A ampla cobertura midiática do episódio envolvendo médicos do Hospital Evangélico suscita reflexões, principalmente por se tratar de exemplo bastante expressivo de convergência interdisciplinar na Ciência do Direito, no caso, filosofia e criminologia.
Em Foucault, haurimos que a literatura não é uma representação da realidade, pois ela nada representa além dela mesma. E Barthes afirma que a literatura realista e, por extensão, a história não reproduzem a realidade, mas produzem "efeitos de realidade".
Desde o giro linguístico da filosofia, muitos pensadores passaram a adotar o perspectivismo, pelo qual cada perspectiva individual está legitimada para defender a própria verdade, sendo que esta resulta de perspectivas sujeitas a alterações influenciadas pelo ambiente. Essa concepção foi sustentada por Nietzsche, para quem as crenças inerentes aos meios, formas e sistemas de conhecimentos não passam de instrumentos que servem ao instinto de sobrevivência de todo ser.
No perspectivismo de Ortega, a individualidade não aparece como entrave ao conhecimento objetivo e, precisamente porque o que cada qual vê é uma realidade e não uma ficção, a perspectiva é um dos componentes da realidade.
A hermenêutica filosófica de Dilthey, Heidegger e Gadammer situa o subjetivismo hermenêutico na própria objetividade do saber, pois a interpretação se incorpora ao objeto interpretado.
Os avanços em linguística, semiologia e na teoria da comunicação levam a compreender os significados em função das relações entre o sujeito emissor e o receptor da mensagem, além de se seus referenciais semânticos. Esse processo é profundamente influenciado pela manipulação ideológica do imaginário social, onde a mídia reina soberana.
Tudo isso repercute na Teoria Criminológica. A teoria do etiquetamento social ("labelling approach") dá o passo inicial na direção de uma Criminologia Crítica, quando Becker afirma que o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal, e não uma qualidade do ato.
O perspectivismo, a pragmática linguística e a criminologia crítica estão firmemente embasadas na psicanálise freudiana, pela qual se constata a existência de uma realidade imaginária a sobrepor-se ao real concreto.
Nuclear na Criminologia Crítica é o teorema de Thomas, explicação criminológica da teoria do etiquetamento. Ele afirma que ações sobre a imagem da realidade criam efeitos reais na opinião pública, o que se estende aos órgãos oficiais que realizam o processo de criminalização sobre pessoas (polícia, Ministério Público, Judiciário, etc.). Estes atuam também a partir de imagens da realidade, e não necessariamente da realidade mesma. E a forma como os agentes de controle social procedem em suas investigações está informada por meta-regras, não propriamente integrantes do ordenamento, mas efetivamente atuantes.
O teorema de Thomas coincide com a noção desenvolvida por Alexy, acerca da existência de um nível de normatividade constituído pelas regras da argumentação jurídica, além dos princípios e normas jurídicas. Ora, regras da argumentação e meta-regras podem ser reunidas num mesmo conceito, o de metalinguagem referida à linguagem do direito.
À luz do que foi divulgado em relação ao "affaire Evangélico", a investigação dá grande ênfase às palavras, conversas telefônicas e recados, manifestações dialógicas sujeitas a múltiplas interpretações. Só que a interpretação tida por verdadeira é a dos intérpretes juridicamente legitimados. É então de questionar se não estaria havendo certa influência das meta-regras e da manipulação ideológica midiática. Pressupõe-se que as conversas gravadas e transcritas descrevem uma realidade fática na qual não contam os fatores metajurídicos analisados.
Mas são apenas palavras, com todos os significados possíveis, todos igualmente válidos. Mas qual dessas perspectivas corresponde à realidade?
O teorema de Thomas não é mera especulação teórica. A atribuição de sentido aos fatos, ocorridos ou imaginados, gera consequências no real concreto. Dada a impossibilidade de afastar a incidência das meta-regras e demais fatores ideológicos, impõe-se o exame de sua efetiva influência nos procedimentos que levem a decisões que possam afetar a reputação, a família, a vida profissional e social e a própria vida de um cidadão, que, antes disso, é pessoa humana.
Fábio da Silva Bozza, professor de Direito Penal no Uninter e na UniBrasil. Luiz Fernando Coelho é professor de Filosofia do Direito no Cesul e no Uninter e professor aposentado da UFPR
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