Este é um breve texto sobre uma boa história a respeito do direito à ampla defesa no processo penal e como até mesmo os mais poderosos devem respeitá-lo. É síntese de relato maior do historiador Kenneth Pennington.
O ano é 1309, quando Henrique, príncipe de Luxemburgo, foi eleito imperador do Sacro Império Romano-Germânico, tornando-se Henrique, o VII. Embora o Sacro Império fosse apenas uma sombra do que já havia sido, o imperador, como herdeiro de uma tradição que remontava aos imperadores romanos, ainda era, nas construções jurídicas da época, o dominus mundi e como tal legibus solutus.
As pretensões imperiais de Henrique VII encontraram oposição das cidades italianas e, em especial, do Rei da Sicília, Robert DAnjou. Henrique tentou dominar a Itália com suas tropas e, embora tenha logrado, em 1312, ocupar Roma, não conseguiu manter o seu domínio.
Henrique VII acusou Robert de traição. Por edital afixado na porta da catedral de Arezzo, citou Robert da acusação e intimou-o a comparecer para julgamento. Para justificar a citação por edital, argumentou que não haveria condições de fazê-la pessoalmente, pois as estradas eram dominadas pelos rebeldes. Resolveu, enfim, promover uma guerra jurídica contra seus inimigos.
Robert não compareceu perante o imperador. Em 1313, Henrique condenou Robert a ser decapitado e a ter os seus bens confiscados. Para embasar a condenação, editou duas leis, tendo ambas sido incorporadas no Corpus Iuris Civilis.
As condenações no papel não tiveram o suporte da força. Os exércitos do imperador foram derrotados. Henrique foi expulso da Itália e, não logrando sucesso, caiu doente e faleceu ainda em 1313.
Apesar da morte do imperador, remanescia a condenação imperial contra Robert. O papa Clemente V, em favor de Robert, publicou três textos, Pastoralis cura, Romani príncipes e Saepe.
A disputa envolvia questões que transcendiam o caso concreto. Uma delas dizia respeito à relação entre o imperador e os reinos europeus. Teria ele jurisdição sobre todos os reis europeus? A questão, porém, que interessa para o fim deste artigo diz respeito ao direito de defesa. Poderia o imperador, dominus mundi e legibus solutus, condenar criminalmente alguém sem a observância do devido processo? A questão não era fácil, pois o imperador não estava apenas acima do Direito. Seus atos constituíam o próprio Direito, o que é ilustrado pela incorporação das leis por ele promulgadas ao Corpus Iuris Civilis.
Nos textos do papa, foi estabelecido que a condenação de Robert era inválida porque não teria sido garantida a ele a ampla defesa. O procedimento judicial poderia ser sumário quando os fatos fossem notórios, prazos, provas e recursos poderiam ser limitados, mas não se poderia prescindir da citação e da concessão da oportunidade de defesa. Oportunizar a defesa seria exigência da lei natural e não poderia ser excluída nem sequer pela ação do imperador.
O reconhecimento da defesa como um direito natural encontrava sustentação nos trabalhos dos canonistas. Defendiam que os príncipes e até mesmo o papa estavam acima apenas do direito positivo, mas não do natural, e que a citação era uma parte essencial do processo. Para justificar sua posição, canonistas como Paucapalea e Johannes Monachus reportavam-se à história bíblica da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Após o pecado original, Deus não expulsou sumariamente Adão e Eva. Ao contrário, chamou por Adão ("Onde estás?") e lhe indagou o que ele havia feito ("Mas quem te fez conhecer que estavas nu, senão o ter comido da árvore, de que eu te tinha ordenado que não comesses?"). Adão, em resposta, atribuiu a culpa à mulher que o próprio Deus havia lhe concedido, em espécie de exceção defensiva. Deus, igualmente, indagou à Eva os motivos de sua ação ("Por que fizeste isto?"). Não escapou à percepção da época de que Deus, onipotente e onisciente, não tinha, em princípio, necessidade de indagar a Adão e a Eva o que haviam feito e por que teriam assim agido. Na conclusão do pensamento medieval, se até Deus chamou Adão e Eva e lhes concedeu oportunidade de defesa, então a citação e a defesa eram partes essenciais do processo e pertinentes ao direito natural. Não faziam, assim, parte do direito positivo e não estavam à disposição do príncipe, propiciando base para a anulação da condenação de Robert.
O entendimento de que o direito de defesa fazia parte da lei natural constitui um precursor de sua elevação, nos tempos modernos, a um direito fundamental, a ser respeitado por quem quer que seja o detentor do poder político.
Apesar de, nos tempos atuais, não ser necessário recorrer aos textos religiosos para justificar a fundamentalidade do direito de defesa, não deixa de ser reconfortante saber que alguns direitos antecedem até mesmo o surgimento das modernas democracias e encontram raízes profundas no patrimônio cultural da humanidade.
Sergio Fernando Moro, juiz federal, é doutor em Direito e professor de Processo Penal na UFPR.
Médicos afirmam que Lula não terá sequelas após mais uma emergência de saúde em seu 3º mandato
Saúde de Lula ameaça estabilidade do Governo em momento crítico; acompanhe o Sem Rodeios
Mudanças feitas no Senado elevam “maior imposto do mundo” para 28,1%
Congresso dobra aposta contra o STF e reserva R$ 60 bi para emendas em 2025
Deixe sua opinião