Conviver é um complexo desafio: se, por um lado, o homem se mostra incapaz de sobreviver completamente isolado, por outro, ao viver em coletividade, valores e interesses cada vez mais complexos e diversos dão origem a desavenças sociais que clamam por soluções pacificadoras.
Antigamente, quando alguém opunha resistência à realização do interesse de outra pessoa, prevalecia a autotutela, ou seja, a desavença era resolvida pelos próprios particulares, prevalecendo o interesse do mais forte sobre o mais fraco. Posteriormente, quando a autotutela passa a ser vedada pelo Estado, surge para este o poder-dever de dizer o direito (iuris dictio), de dar uma solução definitiva para cada conflito concreto que solicite resposta jurisdicional. De fato, o adágio fazer justiça com as próprias mãos implica sempre parcialidade, imediatismo e insensibilidade aos direitos e garantias fundamentais do homem, numa lógica sanguinária e inconstitucional que inviabiliza a justiça.
Entretanto, não obstante a imprescindibilidade de se levar à apreciação de uma instância terceira, oficial e imparcial, certas relações sociais ou conflitos propriamente ditos, bem se sabe quão custoso é recorrer ao Poder Judiciário no Brasil de hoje, mesmo que em sede de jurisdição voluntária (ou seja, mesmo quando não se tratar de lide conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida). Ora, enquanto uma lide é dirimida pela jurisdição contenciosa, onde há partes litigantes em processo contraditório, em sede de jurisdição voluntária há um procedimento sem partes nem lide: trata-se de atividade do poder estatal que tutela a ordem jurídica mediante assistência e controle de atos realizados pelos particulares ao proceder à administração pública do direito privado.
Embora as Defensorias Públicas finalmente pareçam começar a ter condições mínimas de ser efetivamente organizadas e exercidas, não se trata apenas do custo pecuniário, mas de dispêndios em termos temporais, dentre outros, além do desperdício da possibilidade de instituir mecanismos capazes de prevenir conflitos e/ou avalizar situações consensuais referentes a relações privadas cuja lei exige controle público.
Tal desperdício pode ser combatido através de medidas legislativas que autorizem os serviços notariais e de registro a atuar em seara que antes era exclusiva do Poder Judiciário (ainda que em sede de jurisdição voluntária), de modo a oportunizar alternativas mais simples, menos onerosas e mais céleres, sem deixar de resguardar os valores da imparcialidade, eficácia, segurança e estabilidade jurídica, dos quais não se abriria mão. Isso porque, sob a égide da Constituição da República de 1988, a atividade de notários e registradores é reconhecidamente função pública exercida por particular mediante delegação do poder público, que institui seus direitos e deveres, os fiscaliza e regulamenta.
Neste sentido, tenha-se em mente os seguintes diplomas legais: a Lei nº 9.492/97, que, no âmbito dos tabelionatos de protesto de títulos e de outros documentos de dívidas, majora significativamente o rol dos documentos que podem ser apresentados para protesto; a Lei nº 9.307/96, que, ao tratar da arbitragem como meio de solução de litígios, confere-lhes mesma eficácia de sentença judicial; a Lei nº 9.514/97, que, quanto à alienação fiduciária de coisa imóvel prevê solução extrajudicial se houver descumprimento do contrato; a Lei nº 10.931/04, que alterou o art. 213 da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos) no sentido de permitir a retificação administrativa do registro imobiliário, e a Lei nº 11.441/07, que altera alguns importantíssimos artigos do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73) de modo a permitir que o inventário e a partilha, bem como a separação e o divórcio, sejam realizados através de escritura pública e independam de homologação judicial, desde que atendidos certos requisitos legais, como a inexistência de incapazes, o consenso dos envolvidos e a assistência de advogado constituído ou de defensor público (em qualquer dos casos, os respectivos nomes e registros na OAB deverão constar ao final da escritura pública); imprescindível registrar que a escritura e demais atos notariais serão gratuitos para os que se declararem pobres sob as penas da lei.
Como visto, há certos assuntos que, embora de caris privado, o Estado entendeu necessário resguardar e, para tanto, incumbiu-se até de intervir (em diversas intensidades) mesmo que não haja lide ou conflito propriamente dito entre os envolvidos. Nesses casos de jurisdição voluntária a atuação do que conhecemos como cartórios do foro extrajudicial pode ser mais incisiva, na linha dos acima referidos diplomas legais, de modo a desafogar o Poder Judiciário de forma segura e eficaz, dotados de fé pública que são os notários e registradores.
* Este artigo é um dos oito selecionados no Concurso Jurídico Cultural, realizado pelo caderno Justiça e Direito, no final do ano passado.