Pode-se constatar, a partir de seus preceitos, que o Direito contemporâneo se fundamenta, essencialmente, em uma cosmovisão humanista. Os derradeiros indícios dessa hipótese são a vigência da dignidade da pessoa humana, por força do artigo 1º, III, da Constituição Federal, como centro gravitacional do ordenamento jurídico, assim como a prevalência dos direitos humanos, dos direitos fundamentais e dos de personalidade e a vedação da tortura e dos tratamentos desumanos, degradantes e cruéis.
De modo geral, tal cosmovisão, que é normativa, faz referência direta à condição humana, que, em sua vulnerabilidade e hipervulnerabilidade, demanda cuidado e proteção ao mesmo tempo em que exige justiça distributiva, corretiva e social. Mesmas condição e situação humanas, juridicamente normatizadas, impõem, ainda, a tutela das identidades e das subjetividades, bem como o respeito e o reconhecimento de cada vida concreta em comunidade, observando-se os imperativos da inclusão social, do bem-estar individual e coletivo, da qualidade de vida e dos preceitos de responsabilidade socioambiental, perfazendo o plexo de direitos subjetivos tuitivos.
Nessa cosmovisão humanista, portanto, elencam-se explicações e abrem-se horizontes teleológicos aos quais o Direito se vincula e, em nome dos quais, é feito instrumento de condução da vida coletiva, segundo pretensões de emancipação humana e melhoria da existência em conformidade com os valores já referidos, baseando-se na crença de que o Direito possua cogência para conduzir condutas humanas e normatividade para coordenar arranjos coletivos e institucionais.
O pós-humanismo, ou transhumanismo, por sua vez, conforme teoria que embase o entendimento do fenômeno e o posicione mais próximo ou remoto ao humanismo, em larga medida, a partir do debate sobre as implicações da tecnologia, altera profundamente a estabilidade dessa cosmovisão humanista, demandando-lhe novos desafios, seja pela vertente biotecnológica, seja pela sociológica, o que implica harmonizações, permissões e vedações de entendimentos.
É por isso, por exemplo, que estudiosos como o filósofo sueco Nick Bostrom demandam um conceito de "dignidade pós-humana", o que ajuda a entender tanto o humano quanto o pós-humano, um enriquecendo o outro ao se refletir sobre o futuro da humanidade, de sua identidades, subjetividades e de seu aperfeiçoamento, assim como para se compatibilizar horizontes de sentido dessas tradições, prevenindo-se práticas próximas à eugenia, conforme têm debatido autores como Francis Fukuyama, Jurgen Habermas e Michael Sandel, bem como enfocando-se as megadistorções que podem ser produzidas em relação à isonomia.
O plexo de problemas levantados pelos debates pós-humanistas e transhumanistas é juridicamente relevante, pode-se sintetizar, porque, partindo da premissa da produção do humano (e do social) pelas tecnologias, levanta-se uma série de questionamentos sobre os ritos de humanização (formação dos modos de agir, sentir e ser do ser humano) e da ordem das relações sociais, o que é juridicamente central considerando-se que o Direito seja uma técnica de humanização das técnicas (Alain Supiot), portanto, meio institucional de controle da alienação e reificação humanas. O Direito deve ser levado em conta diante de tais problemas, seja como técnica de interdição, seja como de fomento.
A projeção dessa relevância se faz sentir tanto na dimensão biotecnológica, com toda a problemática do biodireito e bioética a partir do desenvolvimento da engenharia genética e da superação dos limites existenciais, quanto na dimensão sociológica, a partir da noção de que as redes coletivas emulam-se segundo leis próprias autônomas e declinadas das tecnologias, sendo, assim, impermeáveis à atuação do político, da sociedade e do indivíduo, gerando-se consequências inevitáveis e não programadas, conduzindo-se autonomamente sem qualquer possibilidade interveniente.
Pensadores como Lucia Santaella, Vilém Flusser, Peter Sloterdijk, Frédéric Vandenberghe, Francisco Rüdiger, entre outros, têm investigado as dimensões do problema do pós-humano/transhumano, os limites da antropotécnica, o papel dessa na constituição do humano (repetição dos exercícios e a mudança de vida), bem como a naturalização da dominação humana. Assim, levantam desde os vértices mais futuristas até aqueles que apontam que o esforço filosófico do humanismo, muito longe de se encontrar exaurido, se refaz potencializado e essencialmente demandado na proteção jurídica e fática do ser humano sujeitado às interações tecnológicas, cuja análise e julgamento valorativo e hermenêutico se mantêm de titularidade exclusiva do intelecto humano, o que infla a responsabilidade do pensamento jurídico diante de tais cenários.
Eliseu Raphael Venturi, advogado, é especialista em direito público e mestrando em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: eliseurventuri@gmail.com
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