Os debates em torno da Lei 12.663, publicada nesta semana e que ficou popularmente conhecida como a Lei Geral da Copa, trouxe inúmeras polêmicas, como a aprovação de medidas como a regulamentação do consumo de bebida alcoólica durante os jogos, as limitações ao comércio no entorno dos estádios, as insenções tributárias para a FIFA (Fédération Internacionale de Football Association), dentre outras.
Não obstante a ampla discussão daí advinda, outro projeto de lei que tramita no Senado, o PLS nº 728 de 2011, que "define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança", durante o período da Copa do Mundo de 2014, não tem suscitado tantos debates. Não obstante o fato de trazer, em seu bojo, ainda mais interrogadores debates jurídicos acerca de sua legalidade e constitucionalidade.
Por exemplo, o artigo 4º do PLS 728 de 2011 tipifica o crime de "provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo", cuja pena varia de 24 a 30 anos.
É certo que uma análise meramente técnica do tipo nos levaria a concluir que a necessidade da concomitância de tantos elementos faria com que a lei dificilmente viesse a ser aplicada. Isso porque urge que a ofensa à integridade física ou a privação da liberdade provoque terror ou pânico e que a ofensa ou a privação tenham ocorrido por motivos ideológicos, religiosos, dentre outros.
Não obstante, é de se reparar que a falta de concretude da definição legal, antes de significar ineficácia, pode levar à arbitrariedade e à seletividade na sua aplicação. Pessoas que jamais foram definidas como terroristas, poderiam passar a sê-lo, bastando para tanto uma bem orquestrada campanha de marketing da FIFA contra grupos que atrapalhassem seus negócios. Rappers protestando podem infundir terror; grevistas podem privar a liberdade; boicotes aos produtos da FIFA organizados pelas redes sociais podem virar motivo ideológico. Havendo campanha na imprensa sustentando isso, não faltarão açodados aplicadores da lei penal querendo fazer "justiça".
A falta de razoabilidade pode também ser vislumbrada no artigo 8º do citado PLS que define como crime o ato de "revender ingressos com valor superior ao estabelecido pela organização dos eventos". O que se está protegendo nesse caso? O interesse do consumidor em pagar o preço justo, ou o interesse comercial da FIFA de não querer ver ninguém ganhando qualquer centavo que não entre em seus cofres? Ainda que se possa imaginar que se está protegendo o consumidor, caberia uma indagação: os apoiadores da medida estão cientes de que, se aprovada, o ato de comprar ingressos via cambista poderia ser qualificado como receptação cuja pena varia de 1 a 4 anos? Além dos cambistas e seus clientes, sentirão o impacto da criminalização os humoristas que se utilizam da entrada em lugares exclusivos para satirizar autoridades. É que o artigo 9º do PLS já citado tipifica o crime de "falsificar credencial com o fim de entrar no estádio ou em áreas de acesso restrito, assim consideradas pela organização dos eventos". Sem brincadeiras com Blatter, pois!
Mas não se poderá encontrar na legislação brasileira uso mais descomedido do direito de criminalizar condutas para o atendimento dos fins exclusivos de uma organização comercial do que a previsão do §2º do artigo 10 do citado projeto. Propõe essa norma a criminalização do dopping culposo. Ou seja, a ingestão por negligência ou imprudência de substância que pode vir a ser considerada substância ou droga proibida pela FIFA, durante a Copa, no Brasil, será problema de polícia, como se ela estivesse ociosa e repleta de recursos e materiais humanos para tal fim.
Mas se há alguma dúvida de que o bem jurídico tutelado com o projeto de lei são os interesses da FIFA, todas elas seriam afastadas com a leitura do artigo 15 do PLS que regula o "incidente de celeridade processual" para que atos processuais sejam realizados durante o final de semana e, até mesmo, nos horários em que não há expediente forense. Num país em que um dos principais problemas do sistema judicial é a demora, soa até como escárnio o dispositivo, segundo o qual, quando há interesse da FIFA, o processo pode tramitar mais rapidamente.
Inúmeros outros pontos poderiam ser debatidos, como a inconstitucionalidade do caráter temporário dessa lei, os patamares da pena, que no caso de terrorismo qualificado partirá de 32 anos, ou ainda o duvidoso interesse da União nessas causas, a atrair a competência da Justiça Federal, como define a lei. Mas nada soa mais estranho do que o Estado brasileiro, diante de tamanhos e tão graves problemas sociais, utilizar-se de uma lei penal para tutelar os interesses de uma entidade comercial, contra tudo e contra todos. Constituição, inclusive.
Francisco do Rêgo Monteiro Rocha Júnior, mestre e doutorando em Direito pela UFPR, coordenador da pós-graduação em Direito e Processo Penal da ABDConst, professor da UniBrasil, advogado criminalista e autor da obra Recurso Especial e Extraordinário Criminais
Vai piorar antes de melhorar: reforma complica sistema de impostos nos primeiros anos
Nova York e outros estados virando território canadense? Propostas de secessão expõem divisão nos EUA
Ação sobre documentos falsos dados a indígenas é engavetada e suspeitos invadem terras
“Estarrecedor”, afirma ONG anticorrupção sobre Gilmar Mendes em entrega de rodovia
Deixe sua opinião