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Na qualidade de juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (2007/2012), participei do julgamento de centenas de processos de prestação de contas de campanha eleitoral. Acompanhei as idas e vindas da discussão sobre as consequências jurídicas da desaprovação. Assisti, durante a maior parte do tempo, a prevalência do entendimento segundo o qual é apenas a falta da prestação das contas – e não sua rejeição – que impede a quitação eleitoral; necessária, dentre outros, para que o cidadão possa obter o registro de sua candidatura.

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Mas, ainda paira incerteza sobre o tema diante do que mais recentemente decidiu o Tribunal Superior Eleitoral a respeito.

A mim – e sei que a outros magistrados do Tribunal em São Paulo – sempre incomodou a circunstância de a desaprovação das contas não acarretar efeito jurídico mais contundente. Quiçá de forma pragmática, pensávamos no confronto entre o emprego de consideráveis recursos públicos para a verificação das contas, de um lado, e o resultado pouco expressivo do julgamento, de outro lado. Portanto, a ideia de sancionar o fato mediante a negativa de quitação eleitoral muitas vezes me pareceu ser positiva para controlar a lisura do pleito. Foi o que expressamente manifestei em artigo publicado para o jornal Carta Forense, edição de 2012.

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Retomo o tema e insisto: é justo preconizar consequências relevantes para a reprovação das contas. Mas, daí a dizer que sua rejeição deva impedir candidaturas – inclusive já neste ano – vai, com o máximo respeito, uma distância considerável.

Em primeiro lugar, reitero não ser correto dizer que a desaprovação das contas, por si só, não teria qualquer serventia. Esse controle é fundamental para detectar captação ilícita de recursos nas campanhas; figura que, uma vez comprovada, autoriza cassação de mandato (art. 30-A da Lei das Eleições) e inelegibilidade pelo prazo de oito anos, nos termos da Lei Complementar 135/2010.

Em segundo lugar, quando o ordenamento trata da inelegibilidade por rejeição de contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas, a lei exige – corretamente, por sinal – que se cuide de irregularidade que "configure ato doloso de improbidade administrativa"; elemento subjetivo que, contudo, não se exige – não se exigiu ao menos até hoje – para a mera desaprovação de contas de campanha. Não parece coerente tratar situações análogas de forma tão díspar.

Não colhe, a respeito, a objeção de que, na prestação de contas de campanha, é irrelevante o elemento subjetivo porque não se cogita da boa ou da má fé do candidato, dado que o controle é essencialmente contábil. Mas, se o controle das contas, em processo de prestação, é essencialmente formal, como extrair daí uma consequência limitadora de direito fundamental?

Se, nos casos em que há suspeita de ilicitude na captação e emprego de recursos já há meios para a respectiva repressão e para imposição de sanções, a recusa à quitação eleitoral fere a razoabilidade: a recusa à quitação – no contexto indicado – é medida desnecessária, não adequada e desproporcional.

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Em terceiro lugar, reitero a opinião de que a alteração da jurisprudência há que preservar os postulados da segurança e da confiança legítima; até mesmo sob a ótica de quem julgou e desaprovou contas na premissa de que dali não decorreria inelegibilidade. Se a Constituição da República não tolera que a lei modificadora do processo eleitoral se aplique antes de um ano de sua vigência (art. 16), com maior razão isso deve ocorrer quando se trata de mudança da jurisprudência.

O tema, como se percebe, é desdobramento das discussões em torno da assim denominada Lei da "Ficha Limpa". Sobre isso, reitero o que já expressei em artigo para o jornal Folha de São Paulo: embora seja certo que a sociedade anseie pela moralização da política e que as disposições da referida lei contribuam para tanto, é preciso considerar que o voto é a mais importante forma de expressão da vontade da sociedade; mais até do que a vontade expressa pelo Legislativo e seguramente mais do que aquela expressa em decisões judiciais. Portanto, seria de se esperar que o primeiro e mais veemente repúdio aos "fichas sujas" viesse pelo voto popular.

Nem se diga que falta ao cidadão informação ou que ele é manipulado. A realidade mostra que candidatos "fichas sujas" cujo passado era bem conhecido foram eleitos com votação expressiva. E, afinal de contas, se o problema é de manipulação, então a melhor solução não está nas restrições impostas às condições de elegibilidade, mas no aperfeiçoamento dos mecanismos de controle do abuso do poder político e econômico, porque aqueles, sim, vão ao cerne do problema da formação da vontade popular; que todos nós queremos ver preservada.

Flávio Luiz Yarshell, advogado, professor titular da USP e ex-juiz do TRE-SP