O tráfico de pessoas é um problema de grande magnitude e que tem despertado cada vez mais atenção. De fato, essa é uma das atividades ilegais que mais produzem dividendos: segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), as atividades criminosas ligadas ao tráfico de pessoas perdem em lucro apenas para o tráfico de drogas e de armas e movimentam algo como 32 bilhões de dólares por ano.
Versão contemporânea de escravidão, o tráfico de pessoas é uma das formas mais odiosas de desumanização, pois submete suas vítimas à mercancia, transformando em coisa quem deve ser tratado como gente. As razões desse ilícito são muitas: pode se dar para fins de trabalho escravo, de exploração sexual, de casamento servil, para remoção de órgãos, enfim, há uma infinidade de destinos nefastos desenhados para as vítimas. Ao final de todas elas, enriquecem-se redes nacionais e internacionais de exploração de mão de obra escrava, de prostituição, grupos vinculados ao turismo sexual e até mesmo à remoção e comercialização de órgãos.
Nesse contexto, todo o esforço na lida contra a questão é bem vindo. Dando conta dessa necessidade, a Assembleia Geral da ONU, na Resolução 55/25 de 15/11/2000, aprovou a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional com dois protocolos adicionais: um para a prevenção, supressão e punição do tráfico de pessoas e outro contra o contrabando de imigrantes. Assim, especialmente através do UNODC, a ONU vêm trabalhando no sentido do reconhecimento do problema e na construção de medidas para a sua prevenção e repressão.
Atento à dimensão da questão, o Protocolo define o tráfico de pessoas como "o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração". Essa ampla definição encontra guarida na necessidade de se reconhecer e identificar um problema que envolve um enorme espectro de condutas praticadas em um também amplíssimo contexto social e econômico.
É também ampla a pletora de elementos a serem considerados nessa conduta ilícita. De fato, desde o número de agentes envolvidos, maior ou menor de acordo com a forma do tráfico e podendo incluir até mesmo grandes empresas, até a participação da própria vítima, que se submete à atividade comumente de forma voluntária, enganada ou não pela promessa de ganhos financeiros, a dimensão fática é riquíssima. Por esse motivo, a definição do que seja o tráfico de pessoas é etérea e nebulosa, o que certamente prejudica a lida com o problema e dificulta a pesquisa por medidas que aliviem os seus efeitos. E também por isso os mecanismos de combate a essa realidade devem ser amplos e adaptáveis, mas ativos e eficientes justamente porque essa espécie ilícita tende a vitimizar as pessoas mais carentes.
É evidente que essas medidas passam pela gestão criminal da questão. Mas não se pode esquecer que a criminalização jamais será capaz de resolver questões sociais (inocente crença que, infelizmente, anima muitos dos responsáveis por políticas públicas mesmo na ONU). Por isso mesmo, a penalização deve ser feita de forma mínima, sempre sob a garantia absoluta dos direitos do cidadão, e nunca na forma da caça às bruxas, da hediondalização e do Estado Penal máximo. A medida fundamental, é bom não esquecer, é sempre educativa em todos os aspectos e passa inicialmente pelo rompimento de tabus e de preconceitos. É, por exemplo, comum a crença de que a vítima do tráfico de pessoas apenas o é porque quis, ou de que a criança traficada consegue um destino melhor do que aquele que teria se não fosse vitimizada. É essencial que se reconheça que, independentemente dos elementos, condicionantes e resultados do tráfico de pessoas, alguém se locupletou do destino de um ser humano e, assim, transformou-o em mercadoria vendável. Em outras palavras: o ser humano deixou de ser um fim em si mesmo e passou a ser meio para a vantagem econômica de uns sobre outros. Por isso mesmo são fundamentais as medidas educativas como a Campanha do Coração Azul, lançadas pelas ONU, e a muito feliz inclusão do enfrentamento ao tráfico de pessoas como um dos objetivos estratégicos do Plano Nacional de Direitos Humanos pelo governo federal. Ali, a proposta é sobretudo de compreensão do problema, coleta de dados e atendimento às vítimas através da criação de programas, treinamento e órgãos especializados na questão.
Em suma, é importante que não se esqueça de que a esfera penal é apenas uma das dimensões envolvidas e aquela que produz os menores efeitos positivos (se é que produz algum). Ademais, transferir o problema ao plano penal, verticalizando a responsabilidade, é uma tendência cômoda e, infelizmente, comum. Embora a dimensão penal esteja efetivamente envolvida, a questão é mais ampla e demanda uma atuação muito mais generosa por parte dos gestores das políticas públicas de direitos humanos. O tema de fato precisa de mais pesquisa, mais campanhas, mais informação e, sobretudo, de um vigoroso golpe no preconceito do cidadão no sentido de apontar a todos que a exploração humana é mais do que um crime: é uma grave violação da própria condição humana.
Rui Carlo Dissenha, mestre em Direito pela UFPR, é especialista em Direito Penal pela Université de Paris II. Masters in Law in Public International Law with International Criminal Law Specialization pela Leiden Universiteit. Doutor em Direitos Humanos pela USP. Professor de Direito Penal do curso de Direito da Universidade Positivo.
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