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Inicio meu artigo com a citação de Fiódor Dostoievski, quando dá passagem ao destino do personagem Raskólnikov, em Crime e Castigo: "As coisas mais insignificantes têm às vezes maior importância e é geralmente por elas que a gente se perde... então não há qualquer limite..."

E isso é realmente o pior quando se fala em direito penal: uma pequena confusão terminológica seria motivo para se flexibilizar a proteção à vida? Indago: a pessoa que atenta contra a vida de outrem merece obter o tratamento previsto no caput do artigo 121 do Código Penal (Homicídio simples. Pena: reclusão, de seis a vinte anos), tendo em vista que os indícios levam a crer que praticou a conduta sem quaisquer motivos?

Como é sabido, fútil é o motivo insignificante, o qual apresenta total desproporção entre o crime cometido e a sua motivação. O ordenamento jurídico é constituído de proibições e de permissões, e, sendo assim, as ações típicas não justificadas devem ser reprováveis. A consciência e a vontade são elementos do dolo, sendo este caracterizado como a decisão incondicionada de rea­lizar o tipo objetivo de um crime, que compreende o fim e os meios selecionados.

Essas são as linhas gerais da questão: mas um problema irá surgir.

Gravíssima lacuna existe no artigo 121, §2º, do Código Penal, pois inexiste a previsão de causa de aumento da pena quando o sujeito mata sem motivo algum. O que é pior! Essa infelicidade legislativa prevista no parágrafo supracitado do referido artigo fez com que, em casos de homicídio tentado ou consumado praticado, em tese, sob o amparo da famigerada "ausência de motivos", venha a beneficiar o agente, mediante a capitulação privilegiada. Contudo, o tratamento deveria ser bem ao contrário, ou seja, qualificando-se o crime, aumentando-se a respectiva pena. Atualmente, como regra, matar por um ínfimo motivo autoriza o aumento da pena, mas matar sem qualquer motivo implica, apenas, homicídio simples.

Em linhas gerais, o tipo penal constitui importante mecanismo de defesa para o réu. Apesar das críticas que gera o direito processual penal brasileiro, a vítima, destarte os problemas enfrentados na fase pré-processual, ainda é figura esquecida na relação jurídica.

Tudo leva a crer que a postura do legislador foi totalmente protetora, e, como resultado, surgem inúmeras confusões terminológicas em nossos tribunais.

É pacífico o entendimento de que cabe tão somente ao tribunal popular dirimir questões de cunho subjetivo, como "motivo fútil" e "ausência de motivo". Falar em ausência de motivos na prática de um crime não pode ser empecilho para submeter à apreciação, pelo tribunal popular, acerca da existência ou não de qualificadora. Eis o problema, pois havendo dúvida sobre a incidência de qualquer qualificadora, deve essa ser mantida e remetida ao Tribunal do Júri, uma vez que este é soberano para analisar tal mister. Pondo em confronto a sociedade e a suposta analogia in malam partem do direito penal, segue a seguinte frase do astrofísico Carl Sagan, a qual me parece ter uma certa relação com o tema: "Ausência da evidência não significa evidência da ausência".

Merece destaque a jurisprudência do STJ, alinhada no sentido de que "as qualificadoras do crime de homicídio só podem ser afastadas pela sentença de pronúncia quando totalmente divorciadas do conjunto fático-probatório dos autos, sob pena de usurparse a competência do juiz natural, qual seja, o Tribunal do Júri". (HC 94280/RJ – Rel. Min. Marco Aurélio).

Apesar das críticas da doutrina, entendo que não há como se vislumbrar a possibilidade de se afastar de imediato qualquer qualificadora antes da apreciação do tribunal popular, em havendo dúvida (menor que seja) sobre a respectiva incidência, deve a qualificadora ser mantida e remetida ao juiz natural, ou seja, aos jurados.

Logicamente, destaco que não se trata de analogia in malam partem, quando da menção da "ausência de motivos", mas que o tipo penal em questão merece uma interpretação extensiva, no sentido de corrigir a falha do legislador. Ademais, atendendo a gravidade de um caso concreto, conforta-me acreditar que se trata tão somente de uma omissão involuntária.

Nas palavras do promotor de justiça Antonio Sergio Cordeiro Piedade, do Mato Grosso, a vítima "é relegada a segundo plano" no sistema processual brasileiro. "A vítima é uma figura esquecida no processo penal. Nós temos produção acadêmica e científica hoje massificada a favor do réu. Não que isso não seja importante, mas é necessária a construção de teses também a favor da sociedade."

A preocupação principal, em matéria de competência do Tribunal do Júri, foi sempre a participação do povo no julgamento do acusado, por considerar implícito e explícito que a sociedade, representada pelos jurados, expressão livre da sua vontade soberana, saberá resguardar a proteção à vida.

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