Na edição de 18 de maio, a Gazeta do Povo divulgou interessante experiência de gestão urbana em Curitiba. Noticiou-se a celebração de acordo entre a prefeitura de Curitiba e uma associação de ciclistas para construção de praça em terreno público e inutilizado na região central da capital paranaense. Pelo ajuste, a associação comprometeu-se a implementar voluntariamente projeto paisagístico e instalar equipamentos públicos na futura "praça de bolso do ciclista".
A experiência em questão guarda relação com uma série de outras ocorrências, que vão desde projetos pontuais, como os pocket parks descritos na mesma notícia, até intervenções estruturais, como se dá nas concessões urbanísticas previstas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Esse conjunto de experiências reflete um fenômeno amplo e de inequívoca importância, caracterizado pela crescente articulação de parcerias para concepção e desenvolvimento de projetos de gestão urbana.
Podem-se fazer três considerações gerais a respeito dessas experiências. A primeira diz respeito à ampliação dos canais democráticos de interação entre Estado e sujeitos privados para tomada de decisões que afetam a coletividade. A cidadania outrora exercida apenas através dos canais político-eleitorais alcança espaços de atuação direta, por meio dos quais surgem reivindicações e propostas para a realização das necessidades coletivas. A sociedade já não se contenta com um papel meramente reativo. Ao invés de apenas aguardar a iniciativa do Estado, assume uma postura propositiva que envolve a apresentação e o desenvolvimento de soluções de interesse coletivo, com ou sem apoio do poder público.
Por um segundo ângulo de análise, as experiências em questão confirmam a superação da tese de distinção estrita entre as esferas estatal e privada, baseada na perseguição de interesses públicos e egoísticos, respectivamente. É cada vez mais frequente o engajamento de agentes privados e segmentos sociais na realização de tarefas que transcendem os interesses privados envolvidos. Segue-se daí que o "interesse público" expressão ampla e flexível, que admite diversos significados e conteúdos , não há de ser necessariamente concebido e realizado a partir dos gabinetes e nos limites das possibilidades estatais.
Enfim, uma terceira observação corresponde à constatação não apenas da admissibilidade, mas do uso reiterado e diversificado de mecanismos consensuais ou convencionais de gestão urbana envolvendo poder público e particulares. Trata-se de parcerias público-privadas em sentido lato expressão polissêmica e muitas vezes vista com certo preconceito, mas cuja aplicação se multiplica em um amplo espectro de formatos possíveis de gestão urbana, inclusive com sujeitos ou grupos dispostos a colaborar sem fins lucrativos.
Há sólido respaldo do direito positivo para essas iniciativas: a gestão urbana democrática é uma premissa constitucional e constitui diretriz de política urbana consagrada pelo Estatuto da Cidade. Além disso, encontram-se consagradas as diretrizes de "cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade" e de observância da isonomia de condições "para os agentes públicos e privados" no processo de urbanização (art. 2º, III e XVI, Lei 10.257/01).
Contudo é preciso considerar um contraponto e os desafios a enfrentar. Muitas vezes haverá conflitos no tocante às pretensões concorrentes que pressionam a definição dos usos e das destinações dos espaços urbanos. Nesse cenário, o poder público surge tanto como um promotor dos valores coletivos quanto como uma espécie de mediador de interesses, o que significa também tutelar os direitos individuais envolvidos. O ideal é atingir soluções consensuais, mas nem sempre assim será, mesmo porque nem todas as demandas poderão ser integralmente atendidas.
Os pleitos individuais ou de grupos de indivíduos podem ganhar força e justificar a realização de procedimentos de debate mais amplos, como a realização de audiências públicas, por exemplo. Podem, da mesma forma, resultar em compromissos mútuos e na celebração de parcerias com o poder público. A manifestação dessas demandas constitui um resultado inevitável uma vitória, certamente do amadurecimento da democracia. Porém, essa tarefa envolve o imperativo de compatibilizar os interesses existentes, não apenas aqueles de caráter coletivo, mas também os individuais, incluindo os da iniciativa privada, que também é promotora do desenvolvimento urbano.
Mas há um outro desafio a superar. Não é raro constatar a ausência de regramento satisfatório para estruturar procedimentos de composição de interesses e, quando cabível, conformar o desenvolvimento de parcerias. Muitas vezes a ausência de condições institucionais impede que se dê vazão às iniciativas surgidas na sociedade e ao aproveitamento pleno das possibilidades de desenvolvimento urbano cooperado. Para se valer efetivamente das oportunidades de interação com a sociedade, é necessário que o poder público ofereça condições institucionais que viabilizem o diálogo e norteiem os compromissos em torno do processo de urbanização.
Guilherme F. D. Reisdorfer, mestre em Direito do Estado, com ênfase em Direito Urbanístico, é advogado.