Gratidão é um dos mais importantes sentimentos para Flávia Piovesan. Foi o que ela manifestou durante a entrevista em que contou um pouco da sua trajetória de vida à reportagem da Gazeta do Povo. Bailarina durante quatorze anos, ela hoje se delicia ao ver sua grande paixão dançar, a filha Sofia de cinco anos. Flávia é doutora em Direito Constitucional e leciona na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e de São Paulo (PUC-SP). Ela também atuou na UN High Level Task Force, uma comissão da Organização das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento. Uma grande honra, diz ela. Trabalhar com foco nos Direitos Humanos foi uma escolha não apenas profissional, mas de vida para a advogada. Na entrevista, Flávia Piovesan falou sobre questões como tortura, aborto e a possibilidade de ser indicada para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Qual a sua opinião sobre a atuação do Brasil em questões internacionais que envolvem os Direitos Humanos?
O Brasil, hoje, e crescentemente, assume o desafio de ser um ator global, a voz a representar o hemisfério sul. Eu lamento muitíssimo, porém, a mudança da postura brasileira no âmbito internacional, no que se refere aos Direitos Humanos, pós-caso Belo Monte. Até então, o Brasil tinha uma postura muito mais aberta, mais cooperativa com o sistema internacional de proteção. Mas, no ano passado, houve a concessão de medidas cautelares pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos determinando a paralização das obras concernentes à hidrelétrica se não fossem atendidos determinados requisitos como oitiva prévia dos povos indígenas que vivem na Bacia do Rio Xingu. O Brasil respondeu de maneira agressiva, atacando o sistema interamericano, qualificando a decisão da comissão como precipitada, equivocada.
Na sua opinião, os crimes da Ditadura deveriam ser punidos?
Sim. Penso que é inaceitável a indiferença jurídica, politica, ética e moral no que se refere a gravíssimas violações dos direitos humanos, que lesam a humanidade, como tortura, desaparecimento forçado de pessoas e execução sumária. Há uma sólida jurisprudência internacional, seja produzida pela ONU, seja pela Organização dos Estados Americanos (OEA), no sentido de sustentar que a Lei de Anistia é um ilícito internacional, porque denega justiça às vítimas, obsta que o Estado investigue, processe, julgue e repare graves violações dos direitos humanos e faz perpetuar a injustiça continuada. Ou seja, entre a condescendência com crimes de Estado e respeito aos Direito Humanos, não há dúvidas de que há de se conferir prevalência aos Direitos Humanos... Só com direito à justiça é que nós vamos consolidar o regime democrático e o Estado de Direito no nosso Brasil, rompendo com o que costumo chamar de continuísmo autoritário. Sem isto, somos incapazes de abolir a tortura no nosso cotidiano. Países que avançaram na justiça de transição têm um maior lastro democrático. A densidade dos direitos civis é fortalecida.
A senhora atuou em uma força-tarefa da ONU para o direito ao desenvolvimento. Qual foi o seu papel lá?
Eu tive a honra de integrar a UN High Level Task Force. A ideia do nosso grupo nós éramos em cinco era justamente lutar pela implementação do direito ao desenvolvimento, dar mais concretude e rigor metodológico a esse debate, propondo indicadores técnicos científicos capazes de mensurar a implementação do direito ao desenvolvimento. Foi-se a época em que o tema desenvolvimento era monopólio dos economistas e que desenvolvimento significava Produto Interno Bruto (PIB). A ideia é repensar o desenvolvimento tendo como cerne a pessoa humana. Incomoda-nos muitíssimo o Brasil contrastar como a sexta maior economia mundial e 84º colocação no Índice de Desenvolvimento Humano.
Como foi a sua opção por trabalhar com Direitos Humanos?
A vida tem de ter sentido, eu acho que consegui encontrar este sentido no mundo jurídico e no mundo vital a partir dos Direitos Humanos. É isso que me move na área jurídica, é um tema transversal. É uma área fascinante, que doa um lastro ético ao Direito. Eu sempre digo que a dignidade humana tem de ser o ponto de partida e de chegada de qualquer leitura interpretativa do Direito. É o que dá sentido.
Qual a sua opinião sobre a descriminalização do aborto?
Eu sou contra a criminalização do aborto. Este é um tema complexo, que deve estar sediado na área da saúde pública. No Brasil, o aborto figura como a quarta causa de mortalidade materna. Há uma discussão, muitas vezes, hipócrita. Está provado que a ilegalidade do aborto só leva à clandestinidade. A clandestinidade leva à realização do aborto em condições inseguras. A insegurança do aborto leva à morte de mulheres e dos fetos também. É morte seletiva de mulheres, porque não são as mulheres de classe média ou alta que morrem. São as mais vulneráveis que morrem em situações absolutamente inseguras, desde "me dê um chute na barriga" até "tome uma agulha de tricô". Não cabe à mulher que aborta, que passa por essa prática tão dolorosa, a cadeia. Esta não é a resposta. Temos de revisitar a legislação repressiva e que isso seja repensado no campo das políticas públicas, na área da saúde e com todo respeito à laicidade do Estado. Cada um tem o direito à liberdade religiosa, mas o Estado há de se mover por uma razão pública e secular e não pelos dogmas sagrados de foro íntimo. Se nós tomarmos o direito comparado, os países que não contam com uma legislação repressiva com relação ao aborto, na Europa Ocidental, são os que apresentam a menor estatística de aborto.
Como a senhora avalia o julgamento do mensalão?
A sensação é de que com o julgamento do mensalão, o indivíduo passa a acreditar na justiça, passa a acreditar na legalidade, que a lei vale para todos, dos mais vulneráveis aos mais poderosos. É por isso que a conjuntura do julgamento do Supremo no caso do mensalão traz toda uma simbologia. É claro que nós somos favoráveis ao garantismo, à condenação com base em provas sólidas, respeitar o devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Mas a mensagem que este julgamento está passando para a população é que pela primeira vez na história do Brasil, por exemplo, uma pessoa que presidiu a câmara pode ser presa, quem preside um banco pode ser preso. Porque até então estas pessoas flutuavam acima da legalidade, no marco da impunidade.
Além da paixão pelo trabalho, o que a senhora gosta de fazer?
Eu adoro a vida familiar, tenho uma filha de cinco anos que é a minha paixão. Ela chama-se Sofia e eu adoro estar com ela. Adoro ballet, dancei durante quatorze anos e agora minha filha está dançando. Todo ano, em razão de uma bolsa de pós-doutorado eu fico, em média, de dois a três meses em Heidelberg, na Alemanha. Uma vida sabática, estudando. Adoro viajar, o capital cultural é impressionante, o que você se transforma e carrega de bagagem, leva-te a um autoconhecimento. É mais fácil conhecer o Brasil de fora para dentro, sempre é possível refletir sobre a nossa realidade. Eu sou muito grata à vida. Gratidão é um sentimento que eu reputo como dos mais relevantes. A vida me deu muito mais do que eu sempre imaginei ter em termos de felicidade. A vida foi transbordante.
Teori Albino Zavascki vai ser sabatinado pelo Senado para assumir a vaga de ministro do STF deixada por Cezar Peluso, mas, em breve, haverá outras em aberto. Seu nome já esteve em algumas listas de possíveis candidatos. Quais são suas perspectivas quanto à possibilidade de integrar esta corte?
Eu gostaria de, uma vez mais, agradecer e expressar a honra pela generosidade desse reconhecimento e a alegria em ter meu nome lembrado, mas sobre comentar este assunto eu prefiro me resguardar no silêncio.