Ficha técnica
Natural de: Rio de Janeiro (RJ)
Currículo: doutor em Ciência Política pela Université de Montpellier, França. Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro.
Jurista que admira: Oliveira Viana
Livro que leu recentemente: Problemas de Política Objetiva, de Oliveira Viana
Nas horas vagas: toca violão e canta
A atuação de um juiz não se resume à atividade jurisdicional. Gerir recursos, processos e pessoas também é uma função do cotidiano dos magistrados. Aqueles que se dedicam a essa atividade de gestão foram definidos pelo professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro Fernando Fontainha como juízes empreendedores. Contudo essa sobrecarga de trabalho administrativo acaba por prejudicar as atividades jurisdicionais, como proferir decisões, presidir audiências e promover conciliações. Além disso, os magistrados não recebem qualquer tipo de treinamento para lidar com essas atividades de gestão. As próprias faculdades de Direito não possuem, em sua grande maioria, disciplinas de gestão estratégica. Em entrevista por telefone concedida ao Justiça & Direito, o professor carioca falou sobre esse trabalho atípico a que estão sujeitos os magistrados, sobre os desafios do Judiciário e sobre os concursos de magistratura nacionais.
O senhor realizou uma pesquisa que se voltou para um estilo de magistrado: o juiz empreendedor. Quem é essa figura?
Existe uma nova moralidade na magistratura e ela aponta para um novo tipo de juiz, que é o juiz empreendedor. Quando eu falo em moralidade, é uma nova maneira de viver a profissão. Esse juiz empreendedor nasce em um contexto particular e pode ser contraposto a outros tipos de juízes. Há o juiz mais tradicional, burocrata, que é aquele juiz que está no imaginário da população, uma pessoa que faz o seu trabalho de maneira muito artesanal, que preside sozinha milhares de audiências por mês e decide processo por processo, com grande nível de reflexão jurídica sobre o que está fazendo. Há o juiz acadêmico, que é um juiz que vai comungar seu trabalho com o trabalho fora da magistratura em instituições de ensino, dando aula de direito e fazendo pesquisas. O juiz político, que também é recente, é aquele que é propulsor da imagem pública da magistratura e das lutas corporativas a partir das associações. E, por fim, o juiz empreendedor, que é aquele que vai focar sua identidade profissional na gestão judiciária.
Esse novo tipo de magistrado tem a ver com a situação atual do Judiciário?
A magistratura brasileira passou por transformações muito sérias na virada do século, muito radicais, de maneira que ela chega hoje muito diferente do que era nos anos 70 ou 80. As novas tecnologias são a expressão de algo maior, que é o foco que a magistratura tem dado à sua dimensão gerencial e administrativa. Isso coloca para o magistrado individual condições institucionais que são novas para ele. Condições para as quais ele não tem o menor treinamento formal. A magistratura brasileira tem uma luta nos últimos 30 anos para que esse novo foco na gestão judiciária incorpore a figura do magistrado como o gestor, o responsável pela gestão do trabalho cotidiano dos tribunais. Claro que nem todos vão se adaptar bem a essa nova conjuntura. Aqueles que se adaptam são os juízes empreendedores. O juiz de hoje não só é alguém capaz de lidar com as novas tecnologias, mas também tem que ser capaz de gerir processos, recursos e pessoas.
E como isso é feito?
Essa gestão de pessoas chega ao ponto de gerir o trabalho da terceirização jurisdicional. Dos juizados especiais ao Supremo Tribunal Federal, cada vez mais os magistrados têm se cercado de assessores, estagiários ou juízes convocados, que são pessoas que fazem o trabalho jurisdicional. O magistrado cada vez mais tende a gerir um trabalho de assessoria e supervisionar um trabalho de jurisdição. Isso o sobrecarrega de trabalho de gestão.
Os magistrados são preparados para lidar com essa carga de gestão?
Os juízes não têm treinamento em administração. Os bons bacharéis em direito no Brasil não têm noção de administração pública para lidar com os tribunais e o Ministério Público ou de administração empresarial para lidar com escritórios de advocacia. Eles vão aprender na prática. Os grandes escritórios profissionalizam sua administração. E os tribunais? Vão profissionalizar sua administração ou vão colocar responsabilidades de gestão na mão de pessoas cobradas num concurso como juristas. Será que a administração do trabalho forense cotidiano está sendo entregue para amadores em administração? Claro que são profissionais do direito, com bacharelado, com três anos de prática jurídica e que passaram por um concurso concorrido, mas seria a melhor opção tirar dessas pessoas competências jurisdicionais e sobrecarregá-las de competências de gestão?
Então os tribunais deveriam ter como presidentes pessoas que não são magistrados?
A alta administração de uma corte, as decisões em nível estratégico têm de ser da magistratura, sem a menor dúvida. Outra questão é a gestão do trabalho cotidiano. Na França, por exemplo, esse serviço cartorial é impessoal. Não existe um só funcionário à disposição do magistrado. O juiz começa o dia de trabalho, e os processos chegam prontos para que ele apenas decida. A carga de administração que ele tem é zero. E os presidentes de tribunais por lá são todos magistrados. Briga entre funcionários e falta de papel não podem e não devem ficar sob responsabilidade dos magistrados. A instituição tem de conspirar para que aquelas pessoas que têm treinamento jurídico fiquem o mais liberadas possível para tarefas jurisdicionais e não de encargos administrativos. A decisão estratégica de nível superior deve ser de magistrados, porque é decisão de política do tribunal. A gestão do cotidiano é que não deve estar na mão dos juízes, para o bem da magistratura e do povo, que é o destinatário final da prestação jurisdicional.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) institui metas de número de processos a serem julgados. Como os magistrados recebem esse controle?
Sobretudo porque os juízes prestam serviço essencial à população e são pagos com dinheiro público, acho salutar haver cobrança de entrega de resultado. O problema não é medir a produtividade, mas a maneira de fazer isso. Não acho que os magistrados têm de ser responsáveis pelo desenvolvimento de rotinas que acelerem a prestação jurisdicional. Eles têm de ser responsáveis pela qualidade das decisões que proferem e, no limite, por dar feedbacks a esse sistema administrativo. O problema não é ter meta. Ocorre que, quando o juiz é administrador, não há responsabilização institucional, e ninguém vai admitir que é um problema administrativo determinada vara ter um acervo que só aumenta. Hoje em dia, é muito fácil responsabilizar o magistrado individual por um volume de processos que impede que uma pessoa só consiga resolver qualquer problema. Uma administração impessoal, inclusive, dá proteção para que os juízes fiquem liberados para o trabalho para o qual eles foram treinados: decidir causas, presidir audiências etc.
A maneira como os concursos estão estruturados é eficiente para selecionar os melhores profissionais?
Ela é ineficiente tanto na França quanto no Brasil. O concurso público é muito bom para selecionar os mais preparados para fazer concurso público. O juiz não é alguém que resolve questão de múltipla escolha, não faz prova oral nem prova escrita. O único meio de seleção que coloca os candidatos em situação minimamente análoga ao que eles vão fazer como profissionais é a prova de sentença. A expressão mais colossal dessa ineficiência é que os livros que propõem treinamento para a prova de sentença não são reutilizados por aqueles que passam no concurso para a vida profissional. Na França, eu fazia essa crítica de que o concurso não seleciona quem tem as melhores qualidades potenciais para se tornar magistrado, e eles diziam que o concurso não é para isso. Quem vai formar o magistrado lá é a escola nacional da magistratura. Na França, o concurso seleciona os melhores egressos das faculdades de direito e o magistrado se forma na escola, que dura 31 meses. No Brasil, o sistema é todo às avessas. Não é só a magistratura. Nosso sistema de recrutamento, salvo raras exceções como a polícia e o Itamaraty, não é baseado na ideia de que existe uma inteligência estatal que forma essas pessoas. Quem forma o juiz no Brasil é o concurso ou a faculdade de direito.