| Foto: Antonio More/Gazeta do Povo

Além de formação técnica, o juiz deve ter visão humanista e transdisciplinar. Essa é a opinião do juiz paranaense Roberto Portugal Bacellar, diretor-presidente da Escola Nacional de Magistratura e candidato à presidência da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). "Mas, para isso, ele tem que ter pé no chão, humildade, contato com a realidade e saber se comunicar com a população", acrescenta. Nesta entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, Bacellar fala da evolução e dos desafios da profissão, além de apontar as dificuldades atribuídas ao cargo, como a falta de políticas de segurança para os magistrados. Para ele, a educação básica, a formação profissional e o posterior desenvolvimento oferecido pelas escolas de magistratura são essenciais para que o juiz atue de forma independente. "Assim é que se faz justiça", afirma.

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Como se seleciona um juiz? O senhor já comentou em outras entrevistas que não basta ser bacharel em Direito ou passar no concurso...

Deve haver mais de 2 mil vagas de juízes sobrando no Brasil porque não há candidatos ou os concursos não conseguem selecionar os melhores. Esse é o grande desafio brasileiro: conseguir que o processo seletivo selecione pessoas vocacionadas. Para passar no concurso, o candidato tem de mostrar conhecimento jurídico geral e especificar esse conhecimento com provas práticas. Também há exames psicológicos e investigação da vida pregressa do candidato. Ainda pode haver a formação continuada com cursos nas escolas de magistratura. O próprio código de ética da magistratura diz que é dever do juiz se atualizar permanentemente em benefício da sociedade.

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E qual a importância do juiz estar inserido no contexto da realidade onde atua?

Como agente de transformação social, o juiz precisa ter uma formação técnica, mas também humanista e visão transdisciplinar. Na sociedade, o juiz tem a responsabilidade de garantir o processo democrático e a própria manutenção da República com independência.

O perfil do juiz tem mudado nos últimos anos?

A primeira diferença básica é que o juiz do passado se debruçava na ideia da legalidade. Hoje, ele passou de aplicador matemático da lei à intérprete de princípios constitucionais. Não interessa se há lei, uma vez que o Poder Judiciário é provocado tem de decidir pelos princípios gerais, atendendo às regras de convivência e às peculiaridades do cargo.

A faculdade de Direito tem acompanhado essa evolução?

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Precisamos preparar o juiz não só para o embate ou para julgar, mas para mediar conflitos e ser um pacificador das convivências. Se o juiz é conhecedor de várias áreas, tem condição de construir uma sociedade mais justa. Mas, para isso, ele tem de ter pé no chão, humildade, contato com a realidade e saber se comunicar com a população. E isso se faz desde a escola. Talvez as crianças precisem aprender conceitos de cidadania e de direito para que a sociedade possa construir melhores políticos, juízes e advogados.

Hoje a gente percebe que quase tudo vai parar no Judiciário. Como conter essa demanda?

Antigamente, quando se falava em acesso à justiça era acesso ao Poder Judiciário. Hoje, o acesso à justiça é a solução adequada ao conflito dentro ou fora do Judiciário, inclusive utilizando métodos alternativos. Há 25 milhões de causas entrando todos os anos na justiça brasileira. Cada juiz trabalha com mais de 1,5 mil processos por mês e há anos em que não se consegue julgar todos.

Fortalecer as instituições reguladoras poderia ser uma saída?

As instituições reguladoras, as instituições ambientais... A ideia é que se facilite o acesso à justiça canalizando soluções extrajudiciais.

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Nesse sentido, qual é a importância de trabalhar métodos de gestão com os juízes?

A gestão é tudo no Poder Judiciário. Mesmo com o avanço tecnológico, temos de investir na gestão de pessoas e nas soluções à distância. Não se justifica que um réu tenha de ser deslocado de uma penitenciária para ser interrogado, quando temos a videoconferência à disposição. O Poder Judiciário tem de se unir para permitir que esses avanços efetivamente aconteçam.

Como garantir mais segurança ao trabalho dos magistrados?

Cada vez que um magistrado tomba no exercício da lei há uma ofensa à dignidade da própria estrutura de poder. Mas o sistema de proteção no Brasil funciona aquém daquilo que é necessário. O próprio magistrado precisa de preparação e capacitação e também é preciso trabalhar questões de inteligência. Em casos específicos, temos procurado propor leis para melhorar a segurança, uma delas é que um caso, como de crime organizado, seja julgado por três juízes não apenas por um.

Sobre sua candidatura à presidência da AMB: como sua experiência pode ajudar nas atividades do cargo?

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Estou na magistratura há 24 anos, 22 deles participando do movimento associativo. Fui presidente da Associação de Magistrados do Paraná, diretor da Escola da Magistratura do Paraná, coordenador de vários projetos e programas de cidadania nas escolas. Dentro da AMB, fui vice-presidente, diretor de comunicação social e coordenei vários cursos e comissões. Hoje me sinto plenamente legitimado a prestar um excelente serviço aos juízes.

Qual a sua principal proposta para a AMB?

A Associação dos Magistrados Brasileiros deve ter um projeto de comunicação social com o objetivo de mostrar para a população a importância de haver juízes independentes para julgar os casos. Um juiz feliz, capacitado, valorizado, que goste do que faz, goste de estudar e que seja humano, com conhecimento transdisciplinar. Um juiz que julgue com segurança, independentemente da opinião pública e de pressões políticas, que se paute pelo o que acontece dentro dos autos do processo. Assim é que se faz justiça.

Como o senhor se posiciona em relação à AMB defender limitações no trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?

O ponto principal da medida tomada pela AMB mostra que, se todo réu tem direito a defesa, não é possível que um juiz não tenha esse direito. Se o juiz merece punição, seremos os primeiros a querer que ele saia do quadro da magistratura. Mas, até que se comprove que esse juiz é corrupto, é preciso passar pelo devido processo legal, com todos os direitos de defesa. O CNJ é bem-vindo e tem uma atuação muito boa na área de gestão, mas deve trabalhar nos limites da constituição.

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Na sua família não é só o senhor que trabalha na área do direito...

Meu avô foi presidente do Tribunal de Justiça do Paraná por 20 anos. Meu irmão mais velho é juiz, meu sobrinho é desembargador...

E de onde vem essa vo­­cação?

Meu irmão mais velho me levava nas audiências quando eu era criança, fazia eu vestir a toga e dizia para eu fazer perguntas. E eu ficava meio constrangido, mas fazia perguntas. Foi um estímulo de criança que depois, no quarto ano da faculdade, despertou como vocação. Percebo que hoje talvez não fosse feliz se não tivesse vivenciando a grande experiência de prestar esse serviço público.

Se alguém dissesse para o senhor que está em dúvida entre ser ou não juiz, o que o senhor falaria?

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Diria para ele fazer o concurso porque é muito gratificante, embora haja muitas dificuldades. Ser juiz é ter a oportunidade de fazer justiça. Muitos servidores reclamam quando chegam mais processos no gabinete, mas devemos comemorar porque, quanto mais casos eu tiver, mais tenho a possibilidade de fazer justiça. Se duas pessoas carregam pedras, uma pode reclamar que as pedras estão pesadas e a outra pode imaginar que aquelas pedras podem construir um templo de justiça. A ideia de construir esse templo é gratificante e motiva o trabalho.