| Foto: Andre Rodrigues/ Gazeta do Povo

O professor de Direito Administrativo na Universidade de São Paulo (USP) Floriano de Azevedo Marques Neto esteve em Curitiba para participar de um fórum promovido pelo Instituto Professor Luiz Alberto Machado na seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR). Marques tratou, essencialmente, da consensualidade no Direito Administrativo, que, para ele, parte da necessidade do administrador em enfrentar problemas complexos e da cobrança da sociedade, que, cada vez mais, participa da vida pública. "Esses dois processos criam a necessidade de romper com a ideia napoleônica de uma administração unilateral, encastelada, que decide e brinda os cidadãos com os regalos da prestação de serviço ou de uma política pública", diz. Para o advogado, que acredita que as atividades acadêmica e profissional se complementam, trabalhar a consensualidade exige mudanças lentas na cultura administrativa, que ainda é regada por problemas. "A gente ainda não consegue lidar com essa ideia de arena pública e de transparência de maneira muito clara", avalia.

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Durante a palestra, o senhor abordou a questão de consensualidade de participação. Podemos dizer que houve uma mudança de mentalidade da atuação do direito administrativo com relação a isso?

Percebo um processo de mudanças paulatinas que é fruto de uma dupla necessidade: de um lado, a da administração enfrentar desafios cada vez mais complexos, demandas das mais variadas e soluções que não podem ser concebidas, exclusivamente, do ponto de vista da estrutura do Estado. De outro, uma sociedade que, crescentemente, exige mais e melhor da administração. Esses dois processos criam a necessidade de romper com a ideia napoleônica de uma administração unilateral, encastelada, que decide e brinda os cidadãos com os regalos da prestação de serviço ou de uma política pública.

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Como saímos disso?

Mediante a percepção de que os instrumentos necessários para melhorar a administração pública envolvem, fundamentalmente, permeabilidade aos interessados, processualidade ao agir e transparência nas decisões. Já percebemos esse tripé no direito, em alguns momentos na prática administrativa e, de maneira dramática, nas aspirações da população. Saber estabelecer esse vínculo com disciplina e respeito é fundamental para que a gente possa ter uma administração mais eficiente e que responda às necessidades da população, que não quer apenas receber o básico e, principalmente, quer se sentir partícipe da atividade administrativa.

Apesar de haver várias iniciativas nesse aspecto, como, por exemplo, a Lei de Acesso à Informação, ainda não há uma grande participação. Como garantir isso?

Uma das formas é o oferecimento de instrumentos legais que criam o dever. No meio acadêmico, a gente se diverte dizendo que é preciso lei para dizer o que já está na Constituição, mas muitas vezes isso tem um aspecto pedagógico. A cultura administrativa muda muito mais lentamente que as leis, um bom exemplo é a Lei de Acesso à Informação. Não foi a lei que inaugurou o dever de transparência e publicidade, isso já estava na Constituição. Mas, se as pessoas tivessem desconsiderado a lei e os jornalistas não tivessem feito dela um instrumento para investigação, isso não mudaria. Os administradores não estão conformados, mas, com o tempo, eles mudam a sua cultura e passam a achar isso tão natural que a opacidade na administração começa a ser vista como algo ruim, não como uma prática.

Como fazer essa abertura à consensualidade com transparência?

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Fazendo reuniões com os interessados na arena pública, por exemplo. Ainda temos uma visão iluminista da administração pública, de que o administrador é dotado de onisciência e capacidade plena de decidir. O mundo hoje é muito mais complexo. As alternativas tecnológicas são mais sofisticadas, e as ferramentas para engajar a população são mais eficientes. Não estou propondo a substituição da autoridade nem dizendo que a administração deve se curvar ao interesse dos privados, até porque esses interesses são conflitantes. Mas acho que a administração tem que levar em conta que é sempre melhor uma solução consensual do que autoritária e uma decisão transparente do que opaca. É sempre melhor uma decisão processualizada do que uma tomada no recôndito da alma do administrador, por mais honesto e bem intencionado que ele seja.

E qual o papel das agências reguladoras nesse contexto?

As agências reguladoras são estruturas da administração que favorecem muito o processo de consensualidade, porque elas se especializam naquilo com que estão lidando. Teoricamente, elas também são instrumentalizadas para balancear, ouvir e ponderar os interesses políticos e estatais com alguma equidistância. E, ainda, porque as agências podem recrutar quadros capacitados nessa nova maneira de agir, fora da velha cultura napoleônica, que é um modelo de administração que mimetiza a cultura de um exército: hierárquica, unilateral, autoritária. Hoje, o que se faz em direito administrativo mais contemporâneo aponta para outra estrutura: sem prescindir da autoridade, mas contando com a participação da sociedade, que vai amadurecendo.

Quais são os problemas que ainda permeiam esse meio?

Existem vários. Ainda não conseguimos lidar com essa ideia de arena pública e de transparência de maneira muito clara. O administrador ainda pensa que é dono de sua função quando, na verdade, é um mero gestor da função pública. Ainda não conseguimos conciliar esse diálogo com os ideais de probidade e honestidade. A cultura dos órgãos de controle, do Judiciário, do gestor, do político eleito ainda tem que ser melhorada. O político, por exemplo, ainda acha que o mandato lhe dá plenos poderes sobre o Estado, o que não é verdade, pois as instituições independem dos governantes eleitos, embora ele tenha espaço de decisão e responsabilidade. Isso é um aprendizado que nos impõe desafios e que a doutrina tem de enfrentar com soluções jurídicas.

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O senhor entrou na área do direito, especificamente no direito público, por qual influência?

Essa é uma pergunta para a qual eu não estava preparado [risos]. Sempre fui muito tocado pelo tema do Estado e da política e, quando fui direcionado para o direito, procurei aquilo que, na época, era muito incipiente: o ramo do direito que lidava com a atuação do Estado e do poder público, que era o direito administrativo. Quando fiz essa opção, meus colegas diziam que eu ia fazer o direito do servidor público, que era a definição de direito administrativo na época. A segunda influência é de ordem pessoal: meu pai, já falecido, era procurador municipal e lidava com contratos. Sempre me impressionei muito com o interesse dele por essas coisas e discutia o assunto com ele. A terceira influência foi acadêmica e teve colaboração importante de alguns professores, como os de Teoria do Estado e de Sociologia do Direito.

E qual o ambiente no qual o senhor se sente mais à vontade: na academia ou na advocacia?

Eu seria um ser incompleto se fizesse só uma das duas coisas. A academia parte de um tema que segue um processo de eterna expansão, e um dos desafios é fechar esse conhecimento. A atividade advocatícia é o inverso: há uma bagagem teórica que você tem que direcionar para o parecer, para o desafio que te é trazido. São duas formas de lidar com conhecimentos distintos, mas o côncavo e o convexo são complementares. Essa complementaridade me faz me sentir mais pleno, pois me permitiu desenvolver um traço de reflexão teórica sem perder de vista que o direito só faz sentido quando tem aplicação prática. Perceber os problemas no mundo intelectual é muito mais difícil do que achar as soluções.