Ficha técnica
Natural de: São Paulo (SP)
Currículo: doutor, mestre e graduado em direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de direito penal da USP. Advogado. Foi secretário da reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.
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Jurista que admira: Márcio Thomaz Bastos
Nas horas vagas: brinca com o filho
Depois de passar por cargos em Brasília no Ministério da Justiça, Pierpaolo Bottini acredita que o Poder Judiciário brasileiro melhorou muito nos últimos anos, mas ainda precisa de alterações. Muito se deve à transparência que aumenta nos órgãos julgadores pelo país. O advogado critica o projeto de novo Código Penal em discussão no Congresso Nacional, pois entende que não há necessidade de produção de novas codificações. Durante passagem por Curitiba para participar de um evento que celebrou os dois anos da nova lei de lavagem de dinheiro, Bottini concedeu entrevista ao Justiça & Direito e comentou sobre essa nova legislação e outros temas do direito penal. A nova lei de lavagem de dinheiro (Lei 12.683/2012) já produziu efeitos?
A lei de lavagem de dinheiro cada vez mais vem se mostrando um instrumento muito relevante no combate ao crime organizado. A grande mudança foi ampliar o número de crimes antecedentes relacionados à lavagem de dinheiro, o que foi importante para evitar a impunidade em certos setores. Mais do que isso, a lei criou uma série de obrigações para pessoas que atuam em determinadas áreas onde há mais lavagem de dinheiro, por exemplo, no setor bancário, no de corretagem imobiliária etc. Foram criadas uma série de obrigações para que esses profissionais se previnam quanto à lavagem de dinheiro na área onde atuam. Estamos criando no Brasil um ambiente onde se torna, eu não diria impossível, mas muito mais difícil a prática da lavagem de dinheiro. Como foi sua experiência como secretário de reforma do Judiciário, entre 2005 e 2007?
Identifiquei uma série de problemas e colaborei para a aprovação da Emenda Constitucional 45/04. Atuamos muito para que ela fosse aprovada, para criar o Conselho Nacional de Justiça. Aprovamos cerca de 25 leis que mudaram o processo, seja civil, penal ou trabalhista, para torná-lo mais ágil, mais eficiente. Claro que não resolvemos todos os problemas, mas demos alguns passos importantes. O CNJ vem cumprindo seu papel?
Acho que vem. Claro que ele tem defeitos como qualquer instituição composta por seres humanos. O Judiciário hoje é muito mais transparente do que há dez anos. Ele está na pauta da mídia. Não sei se a imprensa estaria fazendo esse tipo de discussão hoje se não fosse o CNJ expor uma série de problemas do Judiciário. A discussão sobre o Judiciário é muito mais aberta com o CNJ. Ele deixou de ser aquela caixa preta hermética e passou a se expor para a sociedade, o que é bom. O senhor coordenou uma pesquisa que demonstrou um aumento na aplicação do princípio da insignificância pelos tribunais superiores. Esse aumento mostra uma nova mentalidade dos julgadores?
Talvez o aspecto mais relevante que essa pesquisa mostra, especialmente para o Paraná, é a importância da defensoria pública estruturada. Essas questões jamais chegariam ao Supremo Tribunal Federal se não fosse pela defensoria. Isso mostra uma sensibilidade do Judiciário à questão social, sem dúvida, porém mais de 80% desses casos pesquisados chegaram ao STF através das defensorias dos estados. Eles só não estão presos hoje por um trabalho desses órgãos, que são muito relevantes até por práticas como essa. Ela ajuda a criar jurisprudência. Há parcela da doutrina que critica com veemência os crimes de perigo abstrato. O senhor considera que eles são necessários no ordenamento jurídico?
Tem que se tomar muito cuidado com os crimes de perigo abstrato, mas não acho que não devam existir. O tráfico de drogas, por exemplo, é um crime de perigo abstrato, previsto na própria Constituição. Existem certos setores nos quais esses tipos de crime são importantes: na área ambiental, na área econômica. É importante deixar claro que o crime de perigo abstrato não é crime de mera conduta. É preciso mostrar que aquele comportamento é perigoso e pode gerar um resultado danoso de alguma forma. Não basta eu demonstrar que alguém praticou gestão temerária, cartel ou dirigiu embriagado, que são os exemplos clássicos, mas que gerou um perigo, ainda que hipotético. Esses crimes são importantes, mas devem ser aplicados com muito cuidado, para evitar um direito penal autoritário. Há um projeto de reforma do Código Penal em trâmite no Congresso Nacional. O senhor acha que é necessário fazer alterações no texto atual?
Não acho. É claro que há problemas pontuais no código que precisam ser reformulados, temos problemas na parte de prescrição, nos crimes omissivos. Uma série de crimes da parte especial precisa ser revista, mas não acho que seja preciso um novo código para isso. Eu sou contrário à ideia de novos códigos. Precisamos reformar pontualmente os códigos que existem. Não acho que o código atual seja inadequado ao nosso sistema e à sociedade. O senhor considera que o garantismo encontra repercussão fora da academia?
A ideia de garantismo virou um fetiche. É como se garantista fosse aquele que defende a impunidade, o que não é verdade. O garantismo é o que propõe um direito penal limitado, nos termos da Constituição. O garantista, no fundo, é um constitucionalista. Os tribunais, afora alguns exageros, têm mostrado como é importante um direito penal limitado e restrito. É a faceta mais violenta do Estado, mais agressiva. As cortes brasileiras têm mantido essa linha constitucionalista. É normal que existam embates, diferenças de interpretação, mas os tribunais têm assegurado a prática adequada do direito penal. O senhor foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. É preciso fazer uma alteração no modelo?
A gestão penitenciária no Brasil é um desastre, porque a lei não é aplicada. Não é preciso mudar a lei, bastaria aplicar aquilo que está previsto na Lei de Execução Penal. A pena de prisão da forma como é aplicada é fadada ao fracasso. Os índices de reincidência são altíssimos e os índices de ressocialização são quase nulos. Precisamos rever essa base do direito penal na prisão. Vários crimes que são punidos com prisão poderiam receber penas alternativas, que têm muito mais sucesso na ressocialização. É claro que isso não pode ser feito de forma absoluta, mas cada vez mais temos que investir nessas medidas alternativas. Não faz sentido o Brasil ser o quarto país que mais encarcera pessoas no mundo, o que não está resolvendo o problema da criminalidade e está criando um contingente populacional marginal absurdo. Visitei presídios de norte a sul do país quando fui do conselho e não vi nada que estivesse nem próximo do ideal previsto pelo legislador. Se quisermos respeitar a Constituição, precisamos de modificações, que não passam pela pena de prisão. Ainda há desconhecimento por parte da população sobre as penas alternativas?
Por muito tempo no Brasil houve a banalização da pena alternativa. Ela era entendida como cesta básica e não é por aí. A pena alternativa tem que ser uma pena, um castigo e precisa ser fiscalizada. O sujeito precisa gastar tempo com isso. A pena restritiva de direitos bem aplicada é capaz de transformar esse sentimento, que é justificado, de impunidade. Se um sujeito praticou violência doméstica e resolve com cesta básica, é evidente que haverá sentimento de injustiça na população. O que precisa ser mudado no ensino de direito no país?
Não conheço o ensino jurídico em todas as faculdades, mas acho que ele ainda tem um quê de autoritário, do professor que simplesmente explica a matéria sem um debate, sem um processo de dialética com os alunos. Sempre acreditei que a melhor forma de aprendizado é uma troca de experiências, acredito muito na discussão e no debate de ideias com os alunos. Você precisa firmar conceitos e ir além, instigar a pesquisar, a ir atrás de argumentos novos. Senão você acaba formando um monte de gente que sabe repetir o direito, a legislação, mas não sabe raciocinar em termos jurídicos. Não sabem identificar os interesses por trás das leis, não têm análise crítica do direito.