| Foto: Arquivo pessoal

Foi o interesse pelas grandes questões públicas que levou o jovem Carlos Ari Sundfeld a estudar jornalismo. Ele queria escrever sobre política e foi estudar direito para complementar a formação. Mas o que era secundário tomou espaço e, hoje, o advogado Carlos Ari Sundfeld se tornou um dos principais especialista em direito público do Brasil. O jurista é Fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) e professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Sundfeld conversou por telefone com a reportagem da Gazeta do Povo. Ele falou sobre o excesso de ministérios no Brasil e também avaliou o atual papel do Supremo Tribunal Federal (STF).

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Em 2010, após escândalos de quebra de sigilo fiscal na Justiça Federal, o senhor disse que o Ministério Público (MP) se encolheu diante do presidente da República. Sua opinião, hoje, é a mesma?

O Ministério Público não age como uma instituição. Não é que ele propõe uma ação como fruto dessa deliberação da instituição. No fundo é uma deliberação de um procurador, um promotor. Então isso faz com que haja uma grande flutuação em função de quem é o membro do Ministério Público que está ali com a peteca na mão. E o Ministério Público Federal teve um momento, durante o governo Fernando Henrique, as privatizações, em que ele foi muito mais ativo contra medidas governamentais em geral. Hoje em dia os Procuradores da República estão menos contestadores. Salvo talvez em matéria ambiental.É o nosso modelo de governo, de administração pública que se centraliza muito na figura do Presidente que causa isso?

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Sim, isso tem um pouco a ver com o nosso modelo de governo, em que nosso Presidente tem um certo papel imperial. Até pela votação direta, é muito difícil um Procurador Geral da República iniciar uma ação penal contra o Presidente da República. A não ser que a opinião pública, que votou no Presidente, tenha virado completamente, como aconteceu no caso Collor.

O Senhor já manifestou a opinião que existem ministros demais, ministérios demais aqui no Brasil. Quais são os principais problemas que isso gera para a administração do país?

O problema central é de ineficiência, porque os assuntos para serem decididos estão muito divididos nas mãos de diversos ministérios que precisam se entender. Hoje em dia, cada ministro, no fundo, acaba sendo representante de um segmento, tem uma agenda própria, pertence a um partido, representa um grupo de interesses diferentes. O que o governo tem buscado nos últimos anos é fazer da Casa Civil esse órgão de coordenação. Mas é muito difícil articular quando as pessoas que estão defendendo os interesses contrapostos são os próprios ministros, representantes de partidos políticos.

Como isso poderia ser revertido?

A questão envolve uma reforma, uma diminuição do número de ministérios e grande parte do que hoje é ministério teria que passar a ser secretaria dentro do ministério. De modo que o ministro ficasse incumbido da coordenação das secretarias diferentes que eventualmente se chocariam.

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O Senhor também colaborou com o texto da lei das Parcerias Público-Privadas. O Senhor acha que as PPPs podem ser uma solução ou parte da solução para o problema da grande máquina pública, das diversas funções que o Estado tem?

Em setores importantes, como energia, rodovia, isso vai funcionando muito bem. O grande desafio do Governo é nos serviços que o Estado próprio presta, educação e saúde. Nessas áreas, os Governos têm máquinas gigantescas. O Estado pode, por meio de PPP, terceirizar a implantação e a gestão de tudo que não é essencial na atividade de saúde em si.

Como o Senhor avalia o atual papel do STF?

Eu daria uma opinião baseada nas pesquisas que a SBDP [Sociedade Brasileira de Direito Público] faz há mais de 15 anos trabalhando com pesquisas sobre o funcionamento concreto do STF. São pesquisas em que as pessoas tomam temas específicos e vão ver como aquilo evolui depois de um tempo. Então a sensação eu vou resumir em três ideias. A primeira é: o Supremo tem entrado cada vez em assuntos mais polêmicos e mais políticos. E o Supremo está consciente de que ele está mexendo com o funcionamento do Estado, com o direito das pessoas.A segunda é: o Supremo Tribunal Federal decide e nós tendemos a achar que da decisão do Supremo resulta em efeitos muito concretos. Não é verdade. O Supremo tem mais um papel retórico, de introduzir um argumento de autoridade em uma discussão, do que um papel de fazer diferença efetiva. Então um exemplo. O Supremo decidiu que era preciso que o poder público desse creche para todas as crianças em unidade pré-escolar. Mas isso não fez com que a política governamental mudasse. Para o que serviu a decisão do Supremo? Serviu para que em cada município, no debate político, no debate judicial, em que o promotor eventualmente queira entrar com uma ação civil pública, a decisão do Supremo servisse de argumento.O terceiro ponto e último. O Supremo Tribunal Federal tem um problema de funcionamento interno grave e isso faz com que o Tribunal seja pouco eficiente ao trâmite de suas mensagens nos casos mais importantes. Nos últimos anos ficou muito patente, com decisões sendo tomadas por maioria muito apertada, com muita divergência entre os ministros e cujo resultado final não é muito claro. Você não sabe o que o Supremo decidiu de verdade.

O Senhor teria um exemplo?

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No caso da Ficha Limpa eles discutiram muito, durante dias, e na hora de proclamar o resultado, o Presidente não sabia exatamente o que eles tinham decidido, o que vale e o que não vale.

O Senhor não acha que esse tipo de decisão traz insegurança jurídica?

Sim, brutal. Todas as decisões do Supremo têm repercussão geral, é como se fosse uma norma, uma lei feita pelo Supremo. Acontece que o Supremo, o método de decidir dele, não consegue gerar decisões com esse nível de clareza que as leis têm que ter. Então o que acontece. Os ministros se reúnem, cada um dá um voto, mas não fica claro, pela fundamentação que é toda diferente, qual foi a norma que eles fizeram. Então, os Tribunais têm tido uma dificuldade imensa de aplicar o precedente com repercussão geral. O Supremo está adotando um método de decisão que gera insegurança, você não sabe o que o Supremo decidiu e nem qual é o fundamento. Precisa mudar o sistema de decisão ou esse problema continuará grave.

Como mudar esse tipo de decisão?

Algo que o Ministro Peluzzo, quando tomou posse, disse que ia lutar para fazer, e infelizmente ele não conseguiu, que é o seguinte: o Supremo tem que, embora fazendo seções públicas, promover um maior diálogo interno entre os ministros para tentar produzir decisões consensuais, em que os ministros negociem entre si os seus votos para que haja menos texto, menos votos divergentes. Então eles precisam fazer um entendimento prévio, passar a fazer inclusive reuniões prévias antes da seção pública, para identificar divergências, procurar pontos de consenso, fazer decisões com maior grau de síntese, com maior reflexão quanto aos seus efeitos, tudo isso. Agora, como eles estão decidindo tudo ao vivo e em cores, na televisão, com presença dos jornalistas, cada ministro leva o seu voto, eles não são capazes de chegar a esse grau de refinamento. Então tem que mudar o método. E especialmente diminuir a quantidade de texto que eles produzem. Tem casos que tem 500 páginas. Como se pode imaginar que dessa decisão resulta uma orientação clara? São 500 páginas a serem deglutidas pelas pessoas e para gerar divergências sobre o que está escrito. Então eles começam a se desentender na seção e o ambiente lá fica irrespirável. É um método que além de gerar decisões pouco claras e muitas vezes pouco consistentes, gera conflito inútil entre os ministros.Como o senhor optou pelo Direito como carreira?

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Eu comecei estudando jornalismo, queria ser jornalista de política. Aí fiz resolvi fazer outra faculdade que me ajudasse a trabalhar na política e escolhi direito. Acabei abandonando o curso de jornalismo e fiquei por incompetência até hoje nisso. Eu sou do direito mais ligado à política. No fundo, trabalho com as grandes questões públicas com as quais eu queria trabalhar. Eu não queria ter vida política, nunca pensei nisso, mas eu queria trabalhar com ela. Mas eu também sempre fui ligado ao mundo da cultura, da música instrumental. Meu interesse é por aí.

Então, entre as atrações culturais, a sua preferência é a música instrumental?

E os novos instrumentistas brasileiros são pessoas de formação clássica, como André Mehmari. Só que eles têm uma tradição que dialogam com Dorival Caymmi, com os grandes nomes daquele período da música brasileira em que nós tivemos os intuitivos. E essa mistura de sofisticação, de gente formada de modo sofisticado, mas aberta a nossa tradição popular é fantástica e está ocorrendo muitíssimo. Isso é que eu adoro.