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 | Antônio More/Gazeta do Povo
| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

A presença do portu­­guês António Ma­nuel Hespanha no Salão Nobre da Facul­­dade de Direito da Universidade Federal do Pa­­raná (UFPR) é garantia de lotação máxima. Ouvir o professor e historiador do Direito falar, por poucas horas que seja, é uma oportunidade que nem um estudante de direito gostaria de deixar passar. Mas ele ficou muito mais tempo. O professor ministrou aulas durante um semestre inteiro em Curitiba e, em junho, recebeu o título de Doutor "Honoris Causa" da UFPR. Nesta entrevista que concedeu ao caderno Justiça & Direito, ele falou da importância de os juristas deixarem de lado o "juridiquês": "O direito, em princípio, é feito pelo povo e para o povo e, portanto, o jurista está cumprindo sua missão quando consegue se comunicar corretamente de forma inteligível com a população em geral" e, ainda, revelou que a primeira vez em que esteve em um estádio de futebol foi aqui, em Curitiba.

Como é a sua relação com os juristas brasileiros?

Mantenho conexões com colegas brasileiros há muito tempo, mas, sobretudo, com Curitiba. Venho para cá há 15 anos e tem sido uma oportunidade para aprender novas coisas. Principalmente sobre um espírito mais jovem de ensinar direito nas faculdades. Creio que essas relações são muito importantes porque Portugal e Brasil têm culturas jurídicas muito parecidas. Contudo, hoje, a cultura jurídica brasileira é substancialmente diferente se comparada às culturas jurídicas europeias. Ela é mais voltada para a sociedade, para os movimentos sociais e cívicos. Na Europa, os juristas, muitas vezes, consideram que isso não os diz respeito, mas um bom técnico do Direito deve estar atento às coisas técnicas e também aos contextos sociais e políticos.

Qual a importância de o direito se comunicar com as outras áreas?

O direito não foi feito para os juristas, o direito existe para toda a sociedade. Às vezes, os juristas esquecem isso e, como o seu público principal são os colegas, falam o "jurisdiquês", que é uma língua própria de juristas. O direito, em princípio, é feito pelo povo e para o povo e, portanto, o jurista está cumprindo sua missão quando consegue se comunicar corretamente de forma inteligível com a população em geral. Essa preocupação de comunicação do Direito com a sociedade é muito mais presente nas culturas jurídicas sul-americanas do que na Europa, onde os juristas têm muito mais a tendência de falar para dentro e não para fora.

E que exemplos poderíamos citar?

Todo empenho que as faculdades têm em relação à sociedade é um exemplo. Há uma grande abertura dos cursos de Direito às disciplinas que não são jurídicas, como Sociologia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, que são saberes que descrevem a vida de outra maneira, não como os juristas a descrevem. Esses ensinamentos enriquecem a descrição da vida. Por outro lado, são criados cursos diretamente ligados à sociedade como, por exemplo, esta faculdade [de Direito da UFPR], que vai criar um curso especial direcionado aos sem-terra.

Por que isso é importante?

Não por uma questão política, mas por procurar auditórios diferentes, maneiras diferentes de ver, que enriquecem a maneira de ver a sociedade pelos juristas. Abrem-se novas maneiras, novas perspectivas, novas culturas. Outro exemplo é o empenho do Ministério Público daqui com as políticas públicas. O MP daqui defende os interesses do Estado, mas defende também os interesses das populações atendidas por políticas públicas. Há uma capacidade de intervenção se há descaso ou desatendimento de direitos fundamentais relativos à saúde ou à educação. Há um grande empenho com a sociedade, e isso não ocorre na Europa, onde o MP é mais tradicional e não se sente comprometido com a defesa das políticas públicas.

Que exemplo português pode ser aplicado ao ordenamento jurídico brasileiro?

O ordenamento jurídico latino-americano foi herdado dos europeus de alguma maneira. No fundo, há uma tendência desde há muito tempo de olhar para a Europa como uma espécie de ninho, de origem, de onde se vai buscar aquilo que é mais adiantado. Só que hoje isso deve ser feito com certo cuidado, porque, muitas vezes, não estão importando coisas novas na Europa. Estão, ao contrário, importando coisas antigas, que não estão de acordo com as dinâmicas sociais de hoje. É fato que interessa, naturalmente, conhecer a cultura jurídica europeia, mas nem tudo é para receber. Muitas coisas que vêm de lá não são nem novas nem são voltadas para o futuro, são voltadas para o passado.

A crise europeia, talvez, seja um exemplo dos ordenamentos jurídicos voltados para o passado?

A crise europeia pode ser interessante, porque, primeiro, ninguém está livre de crise. O exemplo europeu – tomara que não – pode antecipar coisas que podem se passar na América Latina. Pode acontecer. E, portanto, conhecer o modelo europeu nesta altura da crise é importante, sobretudo para não cair em erros em que os europeus caíram, como, por exemplo, desconhecer as políticas públicas, fechar-se em um individualismo extremo, em um completo liberalismo em que os interesses sociais são desconhecidos, são apagados, só se vê a produtividade, o lucro, a competitividade, cada um por si, e o direito, no fundo, a tutelar tudo isso, uma forma de mundo desagregado de pessoas.

Precisamos nos distanciar para entender melhor os fenômenos. Mas qual o papel da história nesse sentido?

Nós que fazemos história temos de nos distanciar para ver o passado de fora. Mas há uma maneira de ver o presente de fora, como se nós não fizéssemos parte do presente. Vendo o presente de fora, vemos todas as coisas ilógicas e irracionais do nosso momento. Estando dentro do presente, nós não vemos isso. De modo que a história se habitua a tomar esse distanciamento e, portanto, sendo uma maneira de observar o passado, também é uma boa maneira de observar o presente, fazer um diagnóstico mais rigoroso do próprio presente.

Esse é o papel do historiador do direito nos dias de hoje?

Sim. Do historiador de modo geral, mas do historiador do direito também. Os juristas normalmente não estão habituados a ver o direito de fora, estão metidos dentro da técnica jurídica. Satisfazem-se, entusiasmam-se com a técnica jurídica e não veem que, vista de fora, a técnica jurídica às vezes é ridícula, irracional, e que há uma dimensão social do direito.

Como está sendo a estadia no Brasil? Soube que o senhor foi a um jogo do Coritiba?

Sim, gosto de futebol, mas nunca tinha ido a um estádio. Nem em Portugal, nunca tinha ido a um estádio grande, ver ao vivo. E já disse que tem uma coisa de que não gostei: no estádio não tem repetição das jogadas importantes [risos]. Não tem como ver como foi a jogada. De resto, é uma estadia super gostosa, ainda mais por estar entre amigos.

Mas o senhor deu sorte para o time?

Não sei se o time precisa de sorte, é um time forte, mas é verdade que eu fui e eles ganharam. Ao jogo anterior, contra o Atlético, eu não tinha ido, e eles perderam.

E o que acha de Curitiba?

A cidade é muito gostosa, o clima é parecido com o europeu, não é muito quente, também chove, como em Lisboa. A cidade é para pessoas que estão na cidade, e eu estou em Curitiba, estou em um grupo de grandes amigos e, portanto, estou mais ou menos como em casa. Não é bem assim, porque a nossa casa faz falta, mas estou mais ou menos como em casa.

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