O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Alcides Tomasetti acredita que a aplicação de um novo Código Civil no Brasil a partir de 2003 implicou custos muito altos para a sociedade, pois ele regula os principais momentos da vida do homem. "Os órgãos governamentais competentes não deveriam ter optado pela elaboração e aplicação de um novo Código Civil, mas deveriam ter reformado o código antigo", afirma o professor nesta entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, concedida durante visita a Curitiba para participação de um evento sobre os dez anos de vigência do Código Civil, realizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Para ele, além desses altos custos, a codificação não foi eficiente em vários aspectos, como o regramento dos contratos. "Há figuras que ele [o Código Civil] deixou de regular", diz. Vindo de uma família de advogados, Tomasetti acredita que o direito tem se distanciado das pessoas. "Os juristas têm um modo de pensar próprio, há uma lógica jurídica específica muito difícil e isso colabora para o afastamento", aponta.
Os dez anos do Código Civil já permitem um balanço dos avanços e retrocessos?
Não. O Código Civil é uma lei de longa duração, é extenso e cobre aspectos essenciais da vida do homem. Basta dizer que o Código Civil regula o nascimento, o casamento e a morte. A averiguação dos seus efeitos coincide com a duração de uma vida. Na sua vida você pode, eventualmente, ser colhida pelo Código Penal, espero que não [risos]; mais cedo ou mais tarde, você será colhida pelo Código Tributário; mas do Código Civil ninguém escapa.
O Código Civil entrou em vigor no século 21. O texto é coerente com o seu tempo?
Infelizmente não. O Código Civil não simplesmente nasceu velho, mas nasceu morto em muitos aspectos porque a elaboração se deu, na maior parte, nos anos 1970, sob o regime militar, e entrou em vigor sob uma democracia formal. Ele vem sofrendo reformas periódicas e mudanças de interpretação. O Código Civil francês é de 1904 e foi retocado em muitos pontos, mas continua o mesmo na maioria das normas, o que muda é a interpretação. Os juízes franceses têm maior sensibilidade social e já mudaram de interpretação várias vezes. A mesma coisa aconteceu com o Código Civil alemão. Então, os órgãos governamentais competentes não deveriam ter optado pela elaboração e aplicação de um novo Código Civil, mas deveriam ter reformado o Código antigo, o que implicaria, inclusive, menos custos sociais, que não foram calculados. Quem gosta de novas leis de grande porte postas em vigor são os livreiros porque são necessárias obras que comentem a nova lei.
Como qualquer código, o Código Civil não traz especificamente todas as situações a serem enfrentadas. A interpretação jurisprudencial já tem dado conta dessa lacuna?
Em parte. A interpretação da parte geral do código e do direito das obrigações está levando a alguns exageros, o que é normal até que se encontre um ponto de equilíbrio. Houve duas grandes inovações no Código Civil: os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, mas que são aplicados indiscriminadamente. Agora está havendo uma espécie de refluxo e, dentro de alguns anos, as coisas devem voltar ao ponto de equilíbrio. Trata-se de uma lei que precisa ser trabalhada, não em sentido progressivo, mas em um processo de avanços e retrocessos, em longo prazo.
Quais foram as principais influências para a elaboração do Código Civil brasileiro?
A influência maior veio do Código Civil italiano de 1942. Isso reforça a tese de que, em alguns aspectos, o Código Civil nasceu com modelos já superados.
Algumas questões ainda ficaram de fora, como a reprodução assistida e a adoção à brasileira. Como vê essas questões?
Os avanços do direito de família no Brasil dificilmente são passíveis de acompanhamento pelas leis. A opinião pública brasileira é muito volátil e acompanha as modificações por pressões de grupos minoritários. A Constituição brasileira é bastante avançada em matéria de direito de família, mas os vanguardistas entendem que ela apresenta defasagens. É preciso ter mais cuidado para que essas reivindicações sejam devidamente filtradas para que, uma vez estabilizadas, recebam uma disciplina. No Brasil há uma tendência muito acentuada de se modificar a Constituição, mas é essencial que haja a devida aplicação da Constituição, que é muito moderna.
A disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil é suficiente para responder às novas ameaças de agressão à pessoa?
Essa disciplina é conservadora no Código Civil, mas há normas avançadas que colhem o núcleo desses direitos na Constituição. Os direitos de personalidade previstos no Código têm a conformação dos anos 1950 e 1960, mas com uma tutela tímida, até porque as violações que acontecem hoje não aconteciam nos anos 1970.
O tratamento dos contratos no Código Civil é coerente com os objetivos de desenvolvimento econômico que o Brasil pretende alcançar?
Há certa coerência, Deus seja louvado [risos]. Mas o regime contratual do Código Civil também nasceu antiquado e há figuras que ele deixou de regular como, por exemplo, a cessão de contrato. Os elaboradores do Código Civil não estavam entre os vanguardistas do direito privado. Há tipos contratuais que não foram levados para o Código Civil sob o argumento de que são fluidos demais para serem incorporados a uma lei de longa duração. Mas a pergunta é: o que é melhor? Uma regulação defeituosa ou nenhuma regulação? Há uma iniciativa de se derrogar parte do Código Civil pondo em vigor um Código Comercial, mas o primeiro ainda é, apesar de tudo, muito melhor elaborado em comparação ao projeto de Código Comercial.
O Código Civil unificou as obrigações civis e comerciais. Essa opção é coerente com a atividade empresarial?
Sim. Há uma frase antiga que diz que todas as pessoas praticam atos empresariais sem serem empresárias. Então não havia porque separar as obrigações civis e comerciais. Um Código Civil que uniformiza esses direitos e obrigações serve aos usuários de maneira homogênea, sem discriminar em favor dos comerciantes. Mas nem por isso o Código Civil pode fugir de contratos praticados pelos empresários. O código tem esse feitio de democratização, mas, em face da estrutura econômica, não há como deixar de estabelecer regimes que não são indistintamente aplicáveis aos empresários e aos não empresários.
Qual sua expectativa sobre o novo Código de Processo Civil? Como está, ele vai otimizar a Justiça?
O projeto do Código de Processo Civil corre um risco por ter sido elaborado apenas por processualistas, apesar de serem dotados de grande competência técnica. O processo civil é um conjunto de procedimentos pelos quais se regula a aplicação das normas do direito privado. De modo que, dentre esses processualistas, tinha que haver privatistas. O Código de Processo Civil atual virou uma colcha de retalhos, só que, mais uma vez, convinha uma reforma, pois os custos sociais de uma nova codificação são muito altos. O novo Código de Processo Civil promete acelerar e racionalizar a administração da Justiça, mas é um projeto altamente técnico que está distanciado da matéria sobre a qual ele versa. Do jeito que ele está sendo articulado, vai haver divergência entre o código que busca aplicar o direito privado e o direito privado que o código busca aplicar.
Qual foi sua maior influência para entrar na área do Direito? E na área civil?
Venho de uma família de advogados, então minha destinação à faculdade de Direito vinha de uma velha pressão familiar. Minha propensão para o direito privado também tem um aspecto anedótico. Estudei na Faculdade de Direito durante os anos 1970, ou seja, em plena vigência do regime militar. Como o direito público dependia do regime, não tinha interesse, e descobri que o direito privado tinha mais efetividade e estava dotado de beleza dogmática. Há correspondência entre o Código Civil e o que se pratica em sociedade. À medida que fui me aprofundando nesses estudos, o direito civil me conquistou e depois o direito comercial. Embora até hoje eu seja apaixonado pelo direito público.
Além do direito, o senhor tem outras paixões, outros hobbies?
Muitos. Sou formado em Letras Português e Latim e iniciei o curso de Filosofia. Sou um leitor compulsivo e um curioso incorrigível. O que me atrai muito é história, principalmente história econômica e da sociologia, e também o estudo das religiões. A ciência do direito é muito árida, mas pode ser temperada com leituras. É preciso sair das instâncias do direito para compreendê-la. Há um jurista que diz a seguinte frase: "sobre uma mesa de presentes ao leigo inteligente podemos encontrar livros de arqueologia, história, religião, mas não encontraremos livros de direito porque a ciência do direito se acantonou". Os juristas têm um modo de pensar próprio, há uma lógica jurídica específica muito difícil, e isso colabora para o afastamento.
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