| Foto: Hugo Harada/ Gazeta do Povo

As incertezas da vida contemporânea são fonte de reflexão sobre o direito para o filósofo e sociólogo Raffaele De Giorgi. O professor da Universidade de Salento, na Itália, colaborou com as pesquisas de Niklas Luhmann e foi amigo pessoal do sociólogo alemão, sobre quem fala com um misto de intimidade e devoção. De Giorgi recebeu a reportagem da Gazeta do Povo quando esteve em Curitiba, em fim do ano passado, durante o III Congresso Brasileiro de Sociologia do Direito, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele falou sobre sua visão sobre a sociedade atual a partir da perspectiva da "ecologia do não saber" e do papel que o direito exerce nesse contexto.

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O senhor analisa a sociedade a partir da "ecologia do não saber". Poderia explicar do que se trata essa perspectiva?

O que caracteriza a nossa sociedade é, entre tantas outras constelações, uma diferença profunda entre o não saber que temos nessa sociedade e as formas diferentes de não saber que havia em outras sociedades. Em outras sociedades, não saber era não saber frente à vontade de Deus, frente à ordem universal, frente às necessidades naturais. O não saber que temos nessa sociedade é a outra cara do saber. Nós sabemos que quanto mais sabemos, tanto maior é o não saber. Nós descobrimos um vírus e não sabemos a reação do vírus. Cuidar dessa nova forma do não saber é tentar experimentar possibilidades para construir futuros.

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E como o direito trabalha com este não saber da nossa sociedade?

Podemos dar diferentes definições para o direito, é uma tecnologia social, é uma ordem através da qual se tenta reconstituir a ordem social, é uma técnica para produzir expectativas estáveis. De qualquer maneira, o direito tem a ver com o futuro e com o não saber. O direito opera com relação ao futuro de uma maneira muito simples: se acontece algo que está violando o direito, então se produz uma consequência, uma sanção. A segurança que temos não é que o direito vai realizar alguma justiça, mas que o direito vai ser produzido e transformado com base em direitos, que as decisões serão tomadas com base em direitos, serão canceladas com base em direitos. Dessa maneira, nós enfrentamos o futuro através do direito. Estas possibilidades de construir o futuro através do direito agora têm diante de si outra possibilidade que é sempre mais expandida no presente, que é o risco.

Como o risco pode ser visto como possibilidade?

Risco não é algo ruim, é uma técnica de construir vínculos com o futuro. E qual a característica dessa técnica moderna que chamamos de risco? É que nós sabemos que queremos evitar um dano futuro. Frente a condições como essas, o direito não tem possibilidades, não pode fazer nada. A única possibilidade que tem o direito é permitir uma ação ou proibir. Frente ao risco, o direito pode só proibir. Se eu disser que você ao sair daqui tem risco de cair, a única maneira de evitar é proibir. Todas as ações têm uma abertura diante do futuro, a única possibilidade que poderia ter o direito seria proibir. Já se realizaram muitas técnicas, não para impedir os riscos, mas para transformar riscos sociais em riscos econômicos. O seguro do carro não diminui os riscos, mas, se acontece um dano, o transforma em problema econômico. Assim, os seguros incrementam os riscos. Na realidade, a alternativa ao risco é só outro risco. Você pode evitar os riscos de ter um acidente de carro ficando em casa.Mas, se ficar, você não faz o seu trabalho.

Como foi trabalhar com Luhmann? O que aprendeu de mais importante?

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Trabalhei com ele por 20 anos. Luhmann era uma personalidade única, a pessoa mais humilde, mais simples que já conheci e que mais tinha capacidade de ternura. O nosso encontro pela primeira vez foi em 1979 e até a sua morte estivemos em uma relação estreitíssima. Ele era um poço sem fundo, uma mina de curiosidade, como um menino que, frente a qualquer coisa, não perguntava "por que é assim?", mas "como pode ser assim?". E sua atitude frente ao que todos consideram óbvio era formular a pergunta "como pode ser?". A democracia é a forma de participação de todos na escolha política. E a pergunta dele era: "como pode ser?". Isso lhe dava a possibilidade de revolucionar continuamente o pensamento comum, o pensamento tradicional e o de construir um pensamento que era uma surpresa contínua.

Como era conviver com ele?

Viver ao lado dele era surpreender-se continuamente, era a possibilidade de entender-se sem falar. Viver com ele era aprender a transformar o que todos consideram óbvio em um problema. Não creio que haja possibilidades de aprender tão grandes para poder absorver tudo que podia vir dele. Quando ele faleceu, eu experimentei pela primeira vez o que quer dizer vazio. E esse vazio é algo do qual eu ainda não me livrei, porque ele era essa simplicidade que é a grandeza universal.

O senhor consegue mensurar a influência que ele teve nos seus estudos?

Minha formação era de filosofia do direito clássica, com grande interesse no pensamento de Hegel, no pensamento de Marx e com estudos da história do pensamento jurídico alemão dos séculos 17, 18 e 19 . E encontrar seu pensamento em 1972, 1973, foi uma desconstrução total de tudo que eu havia construído. E vi que só através dessa destruição de tudo se pode reconstruir, mas sempre com perguntas como "como pode ser?", sempre com uma curiosidade diferente. Nestes anos, nos quais, pelo menos na Europa, estamos vivendo tantos problemas, tenho a impressão de que as grandes possibilidades do pensamento de Luhmann começam a abrir-se agora. Ele estava convencido de que a velha Europa já acabou, produzindo tudo que podia produzir. A velha Europa inventou o Estado, o público, as políticas públicas... A velha Europa acabou com a sociedade estratificada, como eram as velhas sociedades, inventou a racionalidade, o iluminismo e um presente que era aberto às possibilidades de uma sociedade que descrevemos como sociedade complexa, realizou o que se pode chamar de democracia moderna, com as invenções das constituições, das políticas e dos parlamentos. Agora começamos a ver as primeiras manifestações das conquistas da velha Europa. Isso quer dizer que a complexidade dessa sociedade são as primeiras manifestações. A economia experimentou operar como o sistema central da sociedade. E agora estamos vivendo as primeiras manifestações, são quatro, cinco, seis anos.

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E como fica o direito nesta realidade de crise?

O sistema do direito não pode ser mais limitado no Estado, temos que inventar formas diferentes para que essa multidão possa se expressar, ter acesso. Começamos a ver agora o que quer dizer sociedade complexa e essas são manifestações do não saber, através do qual enfrentamos o futuro. E na Europa este não saber está se manifestando com problemas da correspondência entre endividamento, produto interno bruto e problemas fiscais. Isso quer dizer enfrentar o futuro através do não saber, de políticas que produzem mais pobres do que se pode conter. Não se pode solucionar o problema da pobreza através da multiplicação incontrolável da pobreza. O que acontecia na América Latina no passado – um enfrentamento violento entre riqueza e pobreza – agora se vê na Europa, onde se está concentrando cada vez mais a riqueza e expandindo sempre mais a pobreza. Quero dizer, começamos a ver agora manifestações sociais, políticas, econômicas do que é uma sociedade complexa. Na sociologia falavam de sociedade pós-moderna... Não. Essas são as primeiras manifestações da complexidade da sociedade moderna e nós enfrentamos com o não saber.