| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

"Se uma comunidade, uma cultura ou uma sociedade minoritária têm um conjunto de valores que não são inseridos na Constituição, é sinal de que não fazem parte da nação ou do Estado." Essa é a opinião do especialista em estudos constitucionais latino-americanos, o colombiano Rosembert Ariza Santamaría, que esteve no Brasil para ministrar cursos na UniBrasil neste ano. Nesta entrevista concedida por telefone ao Justiça & Direito, Santamaría fala do papel de destaque que o Brasil ocupa na garantia de direitos constitucionais dos povos indígenas. Mesmo assim, ele aponta, esses direitos ainda não têm sido aplicados na prática. "O pluralismo da Constituição do Brasil é apenas formal, é meramente enunciativo porque o desenvolvimento dessa ideia está muito devagar", avalia. Para o jurista, as proximidades culturais entre os latino-americanos devem ser mais bem exploradas. "Acho mais coisas comuns do que diferentes, e temos que trabalhar mais nisso", diz.

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As instituições latino­americanas mais recentes apresentam demandas que não existiam no passado?

Sim, as Constituições da Bolívia e do Equador apresentam demandas diferentes e têm escutado a sociedade, o Estado e as novas dinâmicas dos movimentos sociais. Na atual formação do Estado Constitucional de Direito existe a possibilidade de inserção das demandas dos povos indígenas nas novas constituições. Também emergem os direitos da madre-terra, da água, dos animais. A possibilidade de escuta facilitou essa nova corrente de teoria constitucional, inserindo esses direitos.

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E por que é importante que se coloquem essas novas demandas?

Isso é importante porque a Constituição é uma negociação entre os valores da sociedade e os políticos. Se uma comunidade, uma cultura ou uma sociedade minoritária têm um conjunto de valores que não são inseridos na Constituição, é sinal de que não fazem parte da nação ou do Estado. Outro ponto importante é a necessidade de evolução dos conceitos do direito. Temos um direito pétreo e estático, e as nacionalidades indígenas propõem uma mutação, uma troca de valores na sociedade para haver uma convivência harmônica com a natureza. O último ponto a se considerar são as demandas de igualdade, ou seja, os direitos diferenciados que quase nunca se materializam. Então, o novo constitucionalismo permite que os direitos fundamentais façam referência aos povos indígenas historicamente marginalizados.

Garantir esses direitos na Constituição não necessariamente garante que eles sejam aplicados. Deve haver uma evolução de outras instituições para que haja a garantia efetiva desses direitos?

Sim, necessariamente. Deve haver evolução do sistema educativo, para haver uma educação intercultural e integrante. Também temos que fazer uma mudança no sistema judicial, que os juízes e ministros tenham a compreensão das diversas culturas e da diversidade social. Temos, ainda, que mudar o sistema econômico e fazer mudanças no sistema político para tentar compreender a forma de organização política e econômica dos indígenas. Temos que mudar a sociedade inteira para não sermos discriminadores. Falta muita coisa, mas a evolução dos sistemas jurídico e constitucional é um primeiro passo.

O senhor afirma que, de maneira geral, as constituições latino-americanas não conseguem garantir de forma efetiva os direitos humanos. O senhor poderia comentar essa afirmação?

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Foram feitas várias promessas sobre a materialização dos direitos humanos na sociedade latino-americana, mas os Estados não garantem essas promessas. Precisamos ter a possibilidade da mobilização social quando o Estado não cumpre com os seus compromissos. É um pouco do que acontece hoje no Brasil, onde os sistemas político e jurídico não tramitam as demandas da sociedade. Se o sistema estatal não responde às necessidades sociais, as pessoas têm que se mobilizar para fazer as transformações. Na América Latina, nas transições para a democracia e para os Estados de Direito na década de 1990, o Estado fez muitas promessas, mas não cumpriu.

E isso se reflete hoje?

Acho que sim, porque o Estado não tem dado respostas às necessidades dos jovens, da classe média, a pessoas têm pouca possibilidade de ter educação e saúde de qualidade. Então, quando o Estado, através das constituições, promete fazer mudanças, mas elas não dão certo, a gente tem a possibilidade de fazer protestos sociais para cobrar um Estado diferente daquele que está se propondo. São dois projetos diferentes: o que a sociedade política quer e o que a sociedade nacional e emergente está propondo.

E ainda falta diálogo entre o sistema político e o Judiciário para garantir essas questões sociais?

Não há diálogo institucional para haver um equilíbrio e uma harmonia entre os poderes do Estado. Há uma ideia de autonomia e independência, mas não há instrumentos que facilitem a possibilidade de o Estado todo trabalhar em uma só via. O Poder Executivo tem uma perspectiva, o Judiciário tem outra, e o Legislativo, outra.

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O senhor comentou que a Constituição brasileira é uma possibilidade de se abrir um novo caminho, pois reconhece o pluralismo. O que seria isso?

A primeira Constituição da América Latina que tratou do pluralismo foi a brasileira, pois reconhece a assistência dos povos indígenas. Mas acho que o pluralismo da Constituição do Brasil é apenas formal, é meramente enunciativo porque o desenvolvimento dessa ideia está muito devagar. Não temos um diálogo intercultural e interjurisdicional que possibilite uma coordenação entre os sistemas dos povos indígenas e o sistema jurisdicional.

O senhor já veio para o Brasil mais vezes. Sente alguma diferença cultural nos últimos anos?

Há uma sensação de maior conforto social e acesso das pessoas, como capacidade de compra, acesso à cultura e ao estudo. Estive no Brasil em 1997 pela primeira vez e acho que, de lá para cá, muita coisa mudou. Temos uma sociedade muito mais formada política e culturalmente. Há maior preocupação com os temas da vida pública. Também há consciência sobre onde está e para onde vai o país. Antes, isso não era muito certo porque o país andava errado nas políticas econômicas e políticas. Hoje o Brasil deu certo, e as pessoas sabem por que o Brasil deu certo. Por isso há maior consciência da sociedade sobre a vida econômica, política, social e cultural. O último ponto que está mudando é a consciência da "latinoamericanidade". Antes, as pessoas tinham mais conexões com a Europa e América do Norte, e, agora, há muitas pessoas com sentimento latino-americano.

Alguma diferença cultural mais forte entre Brasil e Colômbia?

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Não temos muitas diferenças, somente a língua, mas acho que os latino-americanos têm muita proximidade cultural, como na música, no futebol, na ideia da vida, da felicidade. Acho mais coisas comuns do que diferentes, e temos que trabalhar mais nisso. Algumas cidades são mais fechadas que outras e o brasileiro, em geral, é uma pessoa alegre e muito bonita.