Defensor do ICMS neutro, sem nenhuma isenção e com as alíquotas iguais para o Brasil inteiro, o jurista Sacha Calmon é contra a proibição dos estados utilizarem suas despesas para fazerem política fiscal. O sotaque mineiro engana e faz pensar que o advogado tributarista não é soteropolitano. Torcedor do Flamengo e do Bahia, Calmon justifica a escolha explicando que em Minas, estado onde vive, "não tem time". Adorador da comida do sertão, o ex-juiz federal pôde conhecer o Nordeste quando ainda era criança e acompanhou o pai, que era engenheiro e trabalhava na ferrovia Transnordestina. Na entrevista à Gazeta do Povo, Calmon defendeu a privatização da infraestrutura brasileira, a diminuição dos impostos sobre consumo e um regime trabalhista mais flexível.
Qual a opinião do senhor sobre o projeto de lei de unificação dos tributos do ICMS?
Quando houve a reforma tributária, na emenda número 1 da Constituição de 1966, logo depois da Revolução de 1964, foi criado o ICM em substituição ao IVC. Os estados cobravam impostos de vendas e consignações. Era um imposto cumulativo, não dava direito a crédito. Então era um imposto extremamente inflacionário. E nós importamos da Europa a introdução do IVA, um imposto sobre valor adicionado. Naquela época, a competência para cobrar os impostos sobre valor adicionado, que é o caso do ICMS, ou era do governo federal, quando o estado era organizado como federação, ou era do estado nacional, porque aí não tinha estados, não tinha problema. É o caso da França, de Portugal, da Itália. Na Alemanha já existia um Estado. Resultado: o competente era a união. O Brasil contrariou e deixou que os estados ficassem competentes. Mas em seguida, quase castrou a competência deles. Definiu tudo em resolução do Senado. Os estados não se deram por vencidos e começaram a dar incentivos que não deviam dar, porque esse imposto é incompatível com finalidades extrafiscais. Daí nasceu a guerra fiscal. Esse tiroteio que a meu ver atrasa o desenvolvimento do Brasil.
Depois dessa explicação, digo o seguinte: eu sou a favor do ICMS neutro, sem nenhuma isenção, sem nenhuma redução de base de cálculo e com as alíquotas iguais para o Brasil inteiro e cobrado no estado do destino, como é na Europa. Agora, é errado proibir os estados de fazerem política fiscal com a sua despesa. Os estados têm que fazer essa política de atração de investimentos com a despesa, com clareza, para saber quanto estão gastando para atrair empresas, para fomentar o desenvolvimento industrial, criação de empregos. Porque quando você renuncia à receita você não sabe de nada, não sabe nem se está sendo produtiva ou não a política de incentivos. Até porque como é um imposto que repercute em outros estados, a consequência é aquela briga, essa confusão jurídica, demanda perigosa de crédito e um ambiente de negócios ruim, há muita incerteza, insegurança jurídica. O ministro Guido Mantega disse que a resolução 72, aprovada no Senado, é o primeiro passo para a Reforma Tributária. O senhor concorda?
Ele está se referindo exatamente à Reforma Tributária do ICMS, que não é imposto dele, é imposto dos estados. Essa questão dos portos, originariamente, era botar alíquota zero. Porque você dava vantagem, em qualquer porto, para não pagar nada de ICMS. Agora, na operação posterior, você vai pagar alíquota interestadual ou interna que for devida, sem crédito. Então a pessoa que importou não pagou, mas aquela que cobrou do importador, vai pagar no lugar dele. Essa que era a ideia, anular o incentivo zerando, que aí eu não transfiro crédito.
Porque o que os portos estavam fazendo era o seguinte: você não precisa pagar nada e aí eu ponho no livro fiscal que você pagou 18%, mas não pagou. O contribuinte do outro Estado acreditava nesses 18% e abatia no imposto que ele tinha que pagar no outro Estado. E o outro Estado falava: eu não vou aceitar, você não pagou nada, você está transferindo para o meu consumidor o ônus, porque não me deu isenção nenhuma, apenas transferiu o momento do pagamento para ele. Então a ideia do Mantega era zerar esse incentivo ilegal, e na operação posterior, com a alíquota cheia, se recuperava o zero da importação. Aí os estados disseram que queriam uma compensação e botaram a alíquota em 4%. Quer dizer, então paga 4% e também só transfere 4%.
Como o senhor acha que o Brasil pode enfrentar a competitividade internacional hoje, principalmente a China, sem ser protecionista? É possível?
Eu acho que sim. Nós temos que fazer, a médio prazo, algumas coisas, como melhorar a infraestrutura, o que significa privatizar ela toda. A capacidade de investimento do governo federal é de 3,7% do PIB, nós precisamos de 24% de investimento. Também é preciso diminuir os impostos sobre o consumo, eles é que encarecem as coisas feitas no Brasil. E nós temos que ter um regime trabalhista mais flexível, se não vai acontecer o que está acontecendo na Europa. Tem muita proteção e muito desemprego. O crédito tem que cair, essas taxas de juro no Brasil são absurdas, são coisa de agiota. E último, a revolução tecnológica, inovação. Então a nossa agenda é de longo prazo. Agora, eu acho que o protecionismo não é uma boa, porque você acomoda quem está apertado.
O senhor é autor do livro A História da Mitologia Judaico-Cristã. O que levou o senhor, como jurista, a se dedicar a este assunto?
Porque, por incrível que pareça, o Direito nasceu das religiões. Porque antigamente, para obrigar as pessoas a ficarem no caminho reto, a norma era religiosa. Deus castiga, Deus manda para o inferno, era o Direito Penal, religioso. E no Direito, premiar é ir para o céu. Então na verdade, as religiões, se você for examinar, elas são mitos, mitológicas. O livro é muito grande, são 800 e tantas páginas. E eu trago a colação de grandes autores que já trataram da natalidade do direito. É uma visão jurídica, crítica das religiões.
O senhor tem alguma religião?
Não, eu sou agnóstico.
Quanto tempo o senhor levou para escrever?
Cinco anos. No fundo era uma obsessão, porque eu fui criado muito super "catolicamente". Meus pais me inculcaram uma religião muito cheia de culpa, de pecado, uma religião do medo, e eu resolvi sacudir esta irracionalidade. A gente fica até com medo de escrever e ser castigado, porque já vem um Deus terrível, um Deus castigador.
O que o senhor mais gosta, agora que passou a obsessão?
Eu gosto da boa literatura, tudo que for bom, bons vinhos, boa música.
Qual a sua literatura favorita?
Gosto muito de policial, gosto da Agatha Christie, gosto do Dan Brown, acho ele fora de série. Do Umberto Eco. Do Prêmio Nobel de Portugal, o Saramago.
[Para de falar e presta atenção em um jogo da Eurocopa que passa na televisão no saguão do hotel]
O senhor gosta de futebol?
Eu gosto.
Que time o senhor torce?
Eu sou Flamenguista.
Mas o senhor não é mineiro?
Sou, mas lá não tem time não. Eu sou Bahia e Flamengo.
Mas Bahia?
É porque eu nasci lá.
Que cidade da Bahia?
Salvador.
Então o senhor é soteropolitano?
Soteropolitano, a cidade do salvador. Sotero em grego é o salvador...
E adotou o Flamengo por quê?
Eu adotei o Flamengo porque papai era engenheiro. Então ele estava fazendo uma estrada de ferro, a Transnordestina, e eu segui ainda menino. E lá no Nordeste, de dez nordestinos, oito são flamenguistas. No Piauí todo mundo é Flamengo. O Flamengo enche o estádio. O Flamengo pode jogar lá em qualquer cidade do Nordeste que a torcida é toda do Flamengo. Não sei por que. São pouquíssimos os vascaínos, fluminense.
Então o senhor conheceu bastante o nordeste na infância?
Conheci porque a estrada saía de Salvador e ia em direção a Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, ia embora. E eu fiquei dos cinco a uns dez anos por conta dessa estrada.
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