Os protestos de 2013 trouxeram a discussão sobre o papel dos movimentos sociais para pauta. As conquistas que a revolta nas ruas trouxe, as consequências do envolvimento de grupos violentos e, principalmente, a demanda gerada para o poder público foram analisada pelo jurista Oscar Vilhena durante uma entrevista que ele concedeu ao caderno Justiça & Direito. O diretor da faculdade de direito da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, procurou fazer uma análise com foco tanto no direito, quanto na visão pessoal dele sobre a sociedade brasileira. Ele esteve em Curitiba durante o Congresso Estadual do Ministério Público no final do ano passado.
Após os protestos de junho de 2013, mudou a expectativa da sociedade a respeito das instituições jurídicas?
A Revolta de Junho, assim que a tenho chamado, ocorre por uma série de motivos. São motivos razoavelmente comuns a outros processos de revolta. Seja o 1968 na França, seja o que aconteceu no Egito e em outros momentos. E quais são os motivos que me parecem mais fundamentais? Não é exatamente a injustiça dentro da sociedade, porque existem muitas sociedades, muitas circunstâncias onde os graus de injustiça são enormes e mesmo assim não há revolta. O que dispara isso? Um dos elementos clássicos é quando há uma espécie de desencontro ou de discrepância entre aquilo que as pessoas acham e têm expectativa de que elas merecem em termos de direito, em termos de políticas, e aquilo que elas experimentam nas suas vidas. Muito embora nós ainda sejamos um país extremamente desigual, há uma percepção de que essa desigualdade é inaceitável. Há uma percepção de que aquilo que foi colocado como o direito à educação, à saúde, ao transporte é sério, e eu realmente posso exigir aquilo. E, no momento em que vou buscar os serviços de saúde, de transporte e de educação, não vejo que meu direito esteja sendo realizado. Aí que deu o curto circuito. Em alguma medida, as revoltas de junho são o resultado de um país que se transformou.
Que tipo de transformação?
Se as gerações anteriores se conformavam com essa situação de negação dos direitos, a nova geração não está se conformando. Então esse foi o primeiro gatilho dessa revolta: a discrepância entre as expectativas normativas trazidas pela constituição de 1988, por uma série de governos democráticos e a experiência real das pessoas que vão utilizar os serviços públicos. Não foi uma revolta para mudar o sistema ou para mudar um modelo econômico. Foi uma revolta para dizer: "nós queremos aquilo que nos é prometido pelo sistema. Aquilo que é prometido pelos políticos".
E por que optaram pelas ruas?
É o fato de não haver um mecanismo confiável de canalização dessa revolta. Os partidos, em alguma medida até muitas das organizações da sociedade civil que canalizavam a indignação CUT, Movimento Sem Terra foram muito atraídos para o seio do governo e como o grande partido de oposição virou governo e a oposição é muito fraca, também não havia outro canal para a canalização dessa frustração.
E qual o impacto disso?
Os índices de confiança nos partidos políticos caíram a 5%, no parlamento é bastante baixo, mas ela afetou também o índice de confiança na polícia, que esteve diretamente envolvida. Como a lei não existe sem as instituições que as aplicam, à medida que a lei perde a sua autoridade, as instituições que são responsáveis por sua aplicação ficaram muito abatidas. Quer dizer, a autoridade delas ficou muito abatida. Há uma necessidade agora de se repensar. O que vamos fazer? Que polícia nós queremos daqui pra frente? Está claro que a que temos aí nós sabemos que não é. Quer dizer, nós queremos o Poder Judiciário que é capaz de aplicar a lei de forma igual a todos e também é capaz de proteger aqueles que estão em situação mais vulnerável ou nós queremos o velho Poder Judiciário que aplica a lei em conformidade com aquele que está julgando? Nós queremos um Ministério Público que seja um aliado da sociedade civil na cobrança, na fiscalização, na veiculação das suas demandas ou nós queremos um Ministério Público que está encastelado e que, sobretudo, pena nos seus próprios interesses institucionais? Então acho que esse é o grande desafio das instituições.
Qual a sua opinião sobre o tratamento jurídico dado às pessoas que participaram das manifestações de junho?
Esse movimento de criminalização dos movimentos sociais não surgiu em junho. Ele vem de antes em diversos setores. Acho que isso começou de uma forma mais contundente na questão do campo, com a criminalização daquele que busca a reforma agrária e que protesta por intermédio da invasão como alguém que estava querendo roubar a terra. Já tem um tempo que os movimentos que buscam desestabilizar essa situação de profunda desigualdade no país são tratados com uma violência muito grande e ilegal. O que aconteceu em junho eu acho que é um pouco mais complicado. Grande parte das autoridades foi tomada de surpresa, especialmente em São Paulo. Houve uma reação num primeiro momento muito desproporcional no emprego da força, e isso, em alguma medida, retroalimentou o próprio movimento. Com isso muitas pessoas que estavam indiferentes às manifestações passaram a ocupar as ruas também para protestar contra a ação policial. E evidentemente o Estado brasileiro teve reações que são muito ambíguas, e uma delas foi essa de tentar configurar leis mais duras sobre aqueles que protestam. E isso é um padrão global. Também não é uma jabuticaba, que só existe no Brasil.
E como é esse padrão global?
No caso dos Estados Unidos fizeram essa curva muito forte, o Canadá recentemente também fez. Diversos países autoritários aproveitaram essa onda pra também fortalecer a sua legislação antiterrorismo. Eu tenho a impressão que no Brasil isso é difícil hoje, dadas as condições institucionais, o Congresso é suficientemente populista para não fazer uma legislação como essa, e o Supremo tem tido um papel muito consistente na garantia dos direitos. Mas evidentemente que o fato de não se legalizar essa atividade não significa que a instituição polícia, por exemplo, não esteja aumentando o seu grau de violência. Então, se num primeiro momento foi muito violento, num outro momento foi absolutamente omisso, o que gerou uma escalada de violência, principalmente de natureza patrimonial. E o Estado absolutamente se omitiu. E isso gerou o que eu chamo de caroneiros do movimento social. Aqueles que tinham uma posição absolutamente marginal no espectro político brasileiro, os grupos que não tinham a menor relevância aproveitaram essa perda da autoridade do Estado e começaram a ocupar as ruas. Nesse sentido sacrificando um momento que era muito especial para o Brasil.
Os black blocs se encaixariam nesse perfil?
Eu acho que sim, porque os black blocs são um grupo que tem uma estética, eles não têm uma proposta. É uma estética da violência. E ela não é sequer meio para alguma coisa. Ela é um fim em si. Eles estão fora do que se concebe como política dentro do regime democrático, ou seja, onde você luta por seus ideais, mas tem que ser capaz de se autoconter, porque as regras estão estabelecidas. Existem regras do jogo pelo qual você pode buscar mudança; existem coisas que colocariam em risco essas regras e, portanto, não podem ser feitas. Os black blocs em alguma medida sequestram as ruas e, ao sequestrar as ruas, alijaram das ruas uma parcela importante da população que vinha se manifestando por causas muito importantes e que já estavam provocando mudanças relevantes também. A mudança da política de transporte foi radical. Coisas que provavelmente levariam 20 anos para acontecer aconteceram em meses. Agora, esse sequestro por pessoas que não estão fazendo política eles estão fazendo violência sem dúvida nenhuma naquele momento abortou essa revolta. A revolta termina muito mais pelo fato de que ela foi sequestrada por atores não políticos do que pelo fato de que o Estado brasileiro não foi capaz de reagir ou que a repressão foi muito brutal. A repressão foi péssima e gerou isso, mas o Estado brasileiro estava reagindo às provocações que vinham da rua, e agora não há mais essa obrigação.
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