Ficha técnica
Currículo: doutor em direito, professor titular de direito penal da Universidade Pablo de Olavide (Espanha), é especialista em Criminalidade e Informática e Direito Penal Econômico.
Leu recentemente: O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura
Nas horas vagas: lê, ouve música e assiste a séries de tevê ("estão melhores que os filmes, minhas preferidas no momento são Breaking Bad e Orange is the New Black")
Do que gostou no Brasil: da comida e da música
Do que não gostou: insegurança ("impede que o Brasil seja o paraíso")
O professor espanhol Alfonso Galán Muñoz é enfático: o Brasil está atrasado no direito penal informático. Com uma legislação deficiente que não criou os tipos penais adequados para esses crimes, o país não está pronto para lidar com essa nova realidade. Muñoz também reforça a necessidade de proteção dos dados originados do uso dos meios digitais, que devem ser protegidos pela inviolabilidade das comunicações. Durante passagem por Curitiba para ministrar curso na FAE, o docente reforçou a importância do direito penal econômico e da responsabilização penal das pessoas jurídicas. O Brasil tem uma regulação adequada para os crimes informáticos?
Absolutamente não. Há algum tempo escrevi um artigo sobre uma reforma do Código Penal brasileiro, e a verdade é que a reforma era deficiente. Apesar de tudo, nem essa reforma foi aprovada, ou seja, não foram cobertas as lacunas que se desejavam cobrir. Há temas fundamentais da vida cotidiana que não estão corretamente regulados, como o uso da internet na investigação de delitos para proteger as garantias dos cidadãos, a intimidade e a inviolabilidade das comunicações. Há delitos que até hoje não podem ser castigados pelo código brasileiro simplesmente porque se cometem por meio da informática. O trabalho que precisa ser feito é enorme. Em 2012, foi aprovada a Lei Carolina Dieckman. Ela é efetiva?
O que fizeram foi uma reforma primordialmente de proteger dados e criaram um delito que critico desde aquela época, que é o delito de hacking com intenção de apreender dados. Esse delito não tem nenhuma utilidade porque é muito difícil demonstrar a intromissão informática, o acesso não autorizado realizado com intenção. E, se não há a intenção, não há delito. Ele não serve absolutamente para nada, serve para criar uma espécie de direito penal simbólico, porque não tem nenhuma chance de ser aplicado. Na Espanha, como é a regulação desses crimes informáticos?
Não ache que na Espanha tudo esteja completamente regulado. Não é perfeito, há problemas. Mas é certo que a preocupação tem sido muito maior e se tem trabalhado sobre o tema há muito mais tempo. Delitos que aqui não existem lá são punidos, como o estelionato informático, o dano informático e o hacking estritamente dito. Acessar um dispositivo informático sem o consentimento do dono na Espanha é um delito, simplesmente porque se vulnera a segurança e não porque haja intenção posterior. Temos regulação de como capturar dados de investigação criminal, regras específicas da responsabilidade dos provedores, também como consequência da enorme influência que exerce a União Europeia. Quando se vem de uma regulação tão exaustiva, tão enorme sobre a delinquência informática e se chega ao Brasil onde a regulação é tão pequena ou inexistente, se surpreende. O Estado respeita os dados pessoais quando realiza investigações digitais?
Na Europa, o que se levantou nos últimos anos é uma discussão muito interessante sobre o que se chama dados de tráfico ou traffic data, que surgem quando qualquer pessoa está navegando e gera uma série de rastros digitais, por exemplo o IP. Por muito tempo discutimos se esses dados estão protegidos pelo direito fundamental à privacidade ou pelo muito mais rígido direito da inviolabilidade das comunicações. A legislação não era de todo clara, mas, atendendo a resoluções do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, decidiu-se que esses dados estão protegidos pelo segredo das comunicações e só podiam ser aferidos pela polícia durante uma investigação criminal com autorização judicial. É um tema controverso, mas na Europa já está claro e aqui não foi nem ao menos levantado. É ruim ter uma lei ruim, mas é muito pior não ter uma lei. Deve haver uma lei que dite as regras, senão a polícia tende a abusar do direito de investigar delitos. A internacionalização da persecução penal interfere na solução dos crimes informáticos?
Uma das características primordiais da criminalidade informática é que ela não conhece fronteiras. Posso cometer um ato em um computador no Brasil, através de um servidor da China para provocar um efeito na Espanha. Se não tivermos uma legislação similar, se a conduta aqui não estiver tipificada, meu ato restará impune. É necessário que haja convênios internacionais não para tornar os direitos penais idênticos mas para aproximá-los nos aspectos mais básicos, como o estelionato informático, a criação de vírus informático. São condutas que podem ocasionar enormes danos patrimoniais. Isso deve ser regulado por padrões mínimos em todo o mundo, do contrário, criaremos paraísos da delinquência informática e todos os infratores irão a esses paraísos para cometer dali os delitos. Não estamos em uma sociedade de fronteiras sólidas, mas os Estados não se dão conta disso e não colaboram entre si, o que leva a criminalidade a superar os Estados. O direito penal econômico tem recebido a devida atenção?
Se a crise econômica que vivemos nos últimos anos teve algo positivo, é que o cidadão médio se deu conta da importância que tem em sua vida o mercado financeiro. Antes ele achava que os operadores da bolsa tinham conhecimento específico e que o que era decidido ali não afetava a sua vida. No entanto, quando um português, um espanhol ou um grego acordou e perdeu seu trabalho porque alguns senhores haviam especulado com valores imobiliários, começou a se preocupar com essas manipulações, condutas ilegais que os mercados fazem. Esses abusos que pareciam tão distantes provocaram a perda de inúmeros postos de trabalho. Os cidadãos começam a entender que o direito penal econômico é importante para a sua vida cotidiana, não só para bancos e grandes companhias. Há o conflito entre a vontade da sociedade por mais punição e o direito penal como último instrumento?
Pedem-se coisas ao direito penal que ele não pode resolver. Ele não pode diminuir o número de condutas delitivas. É muito mais eficaz do ponto de vista preventivo que, quando se cometa um delito, haja uma alta probabilidade de que haverá punição do que termos muitos delitos com muitas penas e que não são aplicadas. Os números de delinquência aumentam quando há a probabilidade alta de que o crime não será julgado, e a opinião pública pede a redução dessa taxa de delinquência. Os políticos poderiam fortalecer os meios para que sejam aplicadas as penas e haja punição, porém isso custa muito dinheiro. Como os políticos não querem gastar, reformam o Código Penal, porque é mais barato. Como a pena continua sem ser aplicada, os criminosos continuam cometendo os delitos. Qual seria a solução para esse problema?
Passa por tornar a pena mais efetiva e não aumentá-la. Aqui no Brasil há penas altíssimas, mas também há uma taxa de criminalidade espetacular. Não significa que os brasileiros são mais delinquentes, mas que na Europa os tipos penais são menos severos e se aplicam em uma porcentagem muito maior. A probabilidade de cometer um homicídio e ser condenado é muito maior na Espanha do que aqui, o que é fundamental para o sistema. A educação dos cidadãos deve mudar para que estejam conscientes de que majorar as penas não diminui o número de crimes.
Qual é a relação entre os meios de comunicação e o direito penal?
Os meios dificultam a aplicação por um aspecto que chamamos na Europa de juízos paralelos. São os casos famosos, em que há o juízo competente e o juízo midiático. Esse juízo tem tanta carga de pressão sobre o juiz que às vezes é a imprensa que condena o réu. É preciso evitar que o magistrado seja contaminado pela pressão midiática, mas é difícil achar equilíbrio. Há a liberdade de informação, mas ela não pode interferir no processo penal. Na Alemanha, estão tentando elaborar uma regulação que evite casos assim. Não é possível que um juri ocorra, mas um apresentador de tevê sem conhecimento jurídico já tenha decidido que o réu é culpado do crime de homicídio. É uma opinião pública que impede a defesa regular do acusado, pois até a condenação ele é inocente na sociedade democrática.
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