• Carregando...
 | André Rodrigues/ Gazeta do Povo
| Foto: André Rodrigues/ Gazeta do Povo

Não há como retroceder na história. Apesar de compartilhar dessa opinião, o jurista e historiador espanhol Rafael Ruiz González acredita que há como trazer bons exemplos dos séculos passados para a contemporaneidade do Direito. Um dos seus estudos aponta justamente um desses modelos: o probabilismo jurídico, característico dos séculos 17 e 18 no mundo ibérico. "Havia um poder de ambiguidade e de manobra para [o juiz] fazer coisas certas ou erradas", aponta nesta entrevista ao Justiça & Direito. O professor admite, porém, que esse modelo, que implica mudanças inclusive no ensino do Direito, gera insegurança jurídica. "Somos burgueses demais e queremos apaixonadamente a segurança jurídica, mas viver é inseguro (...). Hoje, sinceramente, quem acredita na segurança jurídica?", diz. González, que acolheu o Brasil como sua pátria, diz que se sente em casa por aqui. "Eu me sinto. Aliás, eu sou brasileiro", diverte-se.

No que consiste seu estudo?

É uma pesquisa que faço há seis anos sobre a história da Justiça no mundo ibérico no século 17. O motivo que me levou a fazê-la é a percepção de que estamos cansados de tanto formalismo jurídico. Temos um Estado de Direito fantástico, mas que, infelizmente, não está levando, na maior parte das vezes, para se conseguir a justiça.

É um problema das instituições?

Em parte sim, mas fundamentalmente é um problema das pessoas que estão nas instituições. Isso que me levou ao século 17, porque, nessa época, os juízes tinham que seguir a lei, mas tinham liberdade de consciência para olhar, em cada caso, como a lei deveria ser aplicada. Muitos juristas no século 17, tanto em Portugal, quanto na Espanha, falavam que a lei geral e universal não conseguia realizar a justiça, que só se realiza no caso concreto. Portanto deveria haver juízes que sejam justos e honestos e que consigam fazer com que a lei se adapte ao caso concreto de forma justa. E se o juiz não era justo? Aí ele cometia grandes injustiças, isso acontecia mesmo. O fato é que, se há um sistema que acredita que a justiça se realiza no caso concreto e que a lei precisa ser concretizada para que seja justa, é preciso ter um corpo de juízes com algumas qualidades.

E isso depende de formação também...

Isso depende de formação jurídica para conhecer o direito e as leis, não só as leis da época, mas também as leis medievais, romanas e canônicas. Mas não só de formação jurídica, como também de formação moral. Hoje, normalmente se fala que a moral é uma coisa privada que não tem a ver com a vida pública. No século 17, se entendia que uma pessoa que não fosse moralmente honesta não realizaria a justiça. A moralidade envolvia bondade, sinceridade, sobriedade, honestidade, solidariedade, uma série de virtudes e qualidades que ultrapassavam a vida pública. Hoje em dia isso é possível? Acho bem difícil, porque separamos o público do privado.

Isso falta na formação hoje?

Sim. Há uma grande preocupação com a formação jurídica. Mas não há preocupação com a formação humanística, como em História, Literatura, Filosofia e Ética. O ensino se reduz a um código de ética, mas isso não é formação ética, nem humana, nem humanística.

A tendência brasileira de codificar tudo é um dos motivos de o juiz se valer tanto da lei e da jurisprudência para resolver questões, deixando de lado sua personalidade?

O processo histórico passou de uma situação em que se acreditava que, para haver justiça, era preciso juízes justos, para uma situação em que se entende que, para haver justiça, é preciso lei justas. Estamos hoje em um mundo codificado. Isso resolve? Acho que não.

Ou seja, há uma preocupação maior com o procedimento jurídico...

O procedimento jurídico é importante, mas não suficiente, é preciso atingir a justiça, que muitas vezes está no interstício entre os formalismos. Nos séculos 17 e 18, esse espaço era do juiz. Hoje, em geral, ninguém quer estar na mão do arbítrio do juiz, porque se entende que é arbitrário. No século 17, a palavra arbítrio significava "o bom juízo do juiz". Existia um sistema moral chamado de probabilismo. O probabilismo é um sistema moral, que, nessa época, está junto com o jurídico, ou seja, é um sistema moral com implicações jurídicas. O probabilismo jurídico dizia que, diante de uma lei, há três, quatro ou cinco interpretações diferentes, mas qualquer uma delas é boa. Havia um poder de ambiguidade e de manobra para fazer coisas certas ou erradas. O perigo é o juiz escolher o que é mais útil ou mais interessante para ele, o que o torna um juiz injusto e incorreto. Atualmente, só existe uma única possibilidade certa. Há muitos manuais e códigos que dizem o que você pode fazer e tudo que você não pode fazer. No século 19, a ideia de que os juízes eram injustos fez com que eles fossem engessados na lei, mas, agora, as leis estão sendo injustas e a gente não encontra saída.

A saída, talvez, seria voltar a esse sistema do probabilismo?

Não, o melhor é nunca voltar à coisa nenhuma. Mas, se a gente entendesse bem a história do probabilismo jurídico, daria para usar a parte boa dele, que é dar uma margem de interpretação para o juiz. É um risco? É.

A jurisprudência não faz isso atualmente?

Não faz, porque a jurisprudência é uma forma de dizer que é aquela interpretação que está valendo. É ruim? Não, porque pelo menos há uma margem de interpretação. Mas normalmente a jurisprudência tende a fechar, pois só dá para interpretar a lei do jeito que está sendo interpretado pela jurisprudência. O probabilismo dava liberdade realmente. E uma das consequências do probabilismo é julgar mesmos casos de circunstâncias diferentes de formas diferentes, mas as duas sentenças são justas.

E como garantir que isso não cause insegurança jurídica?

Isso vai causar insegurança [risos]. É que nós somos burgueses demais e queremos a segurança jurídica, mas viver é inseguro. Talvez, no início do século 20, foi preciso criar o mito da segurança jurídica, mas, hoje, sinceramente, quem acredita na segurança jurídica? Hoje, essa segurança jurídica está servindo para criar injustiças jurídicas. De acordo com o que está previsto na lei, não faz sentido que o juiz recorra à própria consciência para decidir.

Isso mexeria até com a formação do Direito?

O que está acontecendo hoje é que as faculdades estão virando "cursinhos" para o Exame de Ordem. O que vai acontecer com juízes e advogados cuja formação é similar à formação do cursinho para a faculdade? No cursinho, a pessoa é formatada para não pensar. Estamos fazendo isso agora com os juízes que vão decidir sobre o justo e o injusto na sociedade. A OAB é importante, mas não é o mais importante do mundo jurídico. Que nível de formação têm esses juízes ou advogados? Sinceramente, acho que é muito pequeno.

O senhor tem formação em História e é especialista em literatura. Como o Direito se comunica com essas áreas também?

A literatura tem como missão dar conhecimento do humano. O humano é muito complexo, não somos preto no branco, a vida humana lida com o difuso e o antagônico. E a literatura permite o conhecimento do que é difuso, complexo e humano. Hamlet, por exemplo, como se define em uma única palavra? É muito mais do que isso. Qualquer personagem da literatura é muito rico de complexidade. Os juízes e advogados, às vezes, carecem desse conhecimento da literatura, que é o conhecimento do que é humano. Parece que eles olham para as pessoas como clientes ou como réus. Todo mundo lê doutrina jurídica, mas a literatura dá a riqueza do contato com o humano, e isso é necessário, senão ele fica um técnico e, mesmo a técnica jurídica, não resolve os problemas de justiça e injustiça, é preciso mais, é preciso um contato mais forte com o humano.

E o senhor já se sente brasileiro?

Eu me sinto. Aliás, eu sou brasileiro [risos]. Fui descobrindo isso à medida que fui vivenciando e pensando sobre o assunto. Talvez a doença do pesquisador seja de ficar pensando sobre o que está acontecendo com ele. Vou te dar um exemplo: quando cheguei, eu tinha uma visão muito hispânica de que as coisas tinham que ser claras e distintas, ou seja: pão é pão, queijo é queijo. Aí descobri que aqui tem o pão de queijo, que é muito bom, mas, no começo, eu achava que não ia ser bom, porque não se mistura. Dou outro exemplo: o bendito "jeitinho". Estou plenamente convencido de que ele é bom. Todo mundo diz que é um absurdo, pois significa fazer uma coisa desonesta. Mas o jeitinho também significa facilitar a vida das pessoas sem tornar as coisas tão difíceis, que é o que acontece na Europa. Lá, você encontra todos os direitos garantidos, mas é só isso, ninguém é amável, ninguém "dá um jeito" para você se sentir à vontade. São exemplos bobos, mas, para mim, muito significativos. Aqui, isso é natural. Nunca me senti estrangeiro aqui. É bom se sentir brasileiro, claro que chegam os problemas como o jogo Brasil e Espanha na Copa das Confederações...

E o senhor torce para qual?

Na Espanha há muitos jogadores da Catalunha, então eu prefiro torcer pelo Brasil, é muito melhor [risos].

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]