| Foto: Leticia Verdi/ MEC

Na semana passada, o caderno Justiça & Direito apresentou uma entrevista com a jurista curitibana Paola Bianchi, que defende a revisão da Lei de Anistia brasileira. Nesta edição, conversamos com o jurista Alexandre Magno Fernandes Moreira, coordenador de licitações, contratos e convênios na Consultoria Jurídica do Ministério da Educação e procurador do Banco Central do Brasil, que apresenta uma visão diferente do tema. Para Moreira, que conversou com a Gazeta do Povo por telefone, há um movimento de "esquerda punitiva" no Brasil que quer impor uma visão de mundo ao ordenamento jurídico do país. O jurista defende o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que não há possibilidade de revisão da Lei de Anistia, pois os argumentos utilizados não são cabíveis dentro do sistema maior do Estado de Direito.

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O senhor acredita que há um movimento de política criminal brasileira denominado "esquerda punitiva". Poderia explicar melhor esse termo?

A doutrina reconhece três grandes movimentos de política criminal que têm por objetivo determinar as vias de combate ao crime na sociedade. Temos o movimento conhecido como "lei e ordem", que impõe maior rigor penal aos crimes e direitos menores aos réus e condenados. No outro extremo há o "abolicionismo", que diz que o sistema penal deve ser desintegrado e, em seu lugar, colocados outros meios de pacificação social. No Brasil, predomina o movimento "garantista", que preconiza o direito penal mínimo, buscando punir somente as violações mais significativas e dando preferência às penas não restritivas de liberdade, além de conceder maiores garantias aos réus e condenados. Esse movimento da "esquerda punitiva" foi um termo que cunhei de forma irônica para dizer que é um conjunto de ações não perfeitamente enquadradas em nenhum desses movimentos, apesar da maioria dos seus aderentes se considerarem garantistas e abolicionistas e, paradoxalmente, defenderem mais rigor a tipos específicos de crimes que têm a ver com sua orientação ideológica.

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Quais seriam os efeitos desse movimento na sociedade?

Para esse movimento, o que importa é criminalizar aquilo que é contrário à sua visão de mundo e ideologia. Nada impede que você tente convencer os demais que a sua visão é a correta, mas, para quem trabalha com o direito, essa visão não pode ir contra a Constituição, a não ser que você consiga convencer o país a fazer uma nova Constituição. Essas tentativas incluem modificações nas leis penais, como, por exemplo, penas maiores a quem abandonar animais em comparação a quem abandona seres humanos.

No caso específico da Lei de Anistia, por que não há possibilidade de revisão?

Quando analisamos um caso qualquer, não podemos considerá-lo de forma isolada, deve haver uma coerência com todo o sistema jurídico. Por mais que se diga que essa lei foi contra os direitos humanos e que a tortura é inaceitável, embora esses argumentos sejam bastante razoáveis, temos de verificar se são cabíveis dentro do sistema maior do Estado de Direito. O que estão propondo, basicamente, é que a lei que extinguiu a punibilidade de determinados crimes seja revogada, uma vez que tais crimes seriam imprescritíveis. O problema é que isso pode abrir uma brecha muito perigosa que pode considerar que qualquer lei que descriminalize uma conduta qualquer possa ser revogada a qualquer tempo em nome de um conceito vago. Nossa Constituição deixa claro que, havendo uma causa de extinção da punibilidade como a anistia, não é mais possível punir o crime e não é colocada nenhuma exceção a esse respeito. Várias leis nesse sentido foram feitas desde então. Em 2005, por exemplo, foi extinto o crime de adultério. Se houver uma alegação qualquer de que essa extinção foi nula, todas as pessoas que, de 2005 para cá, cometeram esse fato, poderão ser perseguidas.

Um dos argumentos usados pelos defensores da revisão é que, no momento de promulgação da lei, não existia estabilidade democrática suficiente. O senhor concorda com isso?

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Uma lei pode ser considerada inconstitucional se não foram obedecidos os termos da Constituição vigente à época. Mas, durante o período militar, não foi feita apenas essa lei. Seguindo esse raciocínio teríamos de revogar todas essas leis.

Outro argumento utilizado é que a Constituição brasileira prevê que o país rege-se pela prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais...

Há uma garantia de segurança jurídica quando se fala na preservação de todos os fatos já consumados anteriormente à mudança constitucional. Uma nova legislação só tem efeitos a partir da data em que foi promulgada. Além disso, tudo está sendo feito de forma extremamente parcial, porque a anistia foi dada aos militares e à oposição, que em parte também praticou crimes. Esse movimento pretende rever apenas o que teria sido feito pelo governo militar. Se a lei fosse considerada nula, por uma questão de coerência, necessariamente, todos os atos teriam de ser revistos.

E sobre a questão de crimes contínuos praticados durante a ditadura que ainda não estariam prescritos?

O crime permanente tem uma característica específica, pois sua execução se prolonga no tempo. Esse argumento tem algum sentido, mas estou dizendo isso como se a Lei de Anistia não existisse. Existindo a lei, não faz diferença, pois ela extinguiu expressamente sua punibilidade.

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos cunhou que o as leis de autoanistia são um ilícito internacional e que o Brasil, então, estaria em desacordo com a Corte. Como o país pode resolver esse problema?

O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o que não inclui a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Orga­nização dos Estados Ame­ri­canos [OEA]. Para essa corte, alguns crimes são considerados imprescritíveis, mas pela nossa Constituição só dois são considerados: o racismo e a situação de grupos armados contra o Estado. Então, qualquer atendimento a uma decisão da Corte da OEA, nesse caso, seria uma afronta à Constituição brasileira.

O senhor pretende fazer um mestrado nos Estados Unidos. Qual tema vai trabalhar?

Sou professor de direito penal e administrativo e estou trabalhando no Ministério da Educação justamente na área de processo administrativo disciplinar que engloba os dois campos. Nossa lei de processo administrativo é muito boa, mas sucinta, e acredito que a lei norte-americana é muito completa. Comecei a pesquisar de modo a fazer um mestrado sobre o tema até para dar eventuais sugestões para a lei brasileira. Então apareceu um convite da Vanderbilt University, achei a proposta interessante e estou partindo para lá para passar um ano fazendo a pesquisa.