| Foto: André Rodrigues/ Gazeta do Povo

O advogado e doutor em Direito Comercial Erasmo Valladão Aze­­vedo e Novaes França é um grande crítico da ideia de criação de uma nova codificação para o direito empresarial. "A edição de um Código Comercial depois de apenas dez anos de vigência do Código Civil é uma ideia totalmente anacrônica, pelo menos no Brasil", afirma. Nesta entrevista, concedia por telefone à Gazeta do Povo, o advogado elenca pelo menos sete pontos em que o projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados não vai ajudar no crescimento econômico do país e pode até mesmo desestimular a criação de novas empresas. "Vai trazer uma insegurança jurídica enorme", resume. Pianista profissional, Valladão conta que hoje está "desempregado" da função, mas continua à procura de lugares onde possa tocar.

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Mesmo sendo contra a elaboração de um novo Código Comercial, o senhor não vê a necessidade de se aperfeiçoarem as questões comerciais dispostas hoje no Código Civil?

Uma coisa ou outra, sim. O problema é que você não muda de código como muda de roupa. O Código Civil possui dois mil e tantos artigos, você imagina o que é isso na vida de um país? É muito mais complexo do que mudar a Constituição Federal, pois o Direito Civil regula tudo da nossa vida. Houve uma unificação dos direitos e obrigações, o que foi extremamente saudável. Apenas uma ou outra coisa precisa ser modificada, sobretudo no tocante às sociedades limitadas que possuem regras muito engessadas. A antiga lei de 1919 [de sociedade por quotas de responsabilidade limitada] deixava a sociedade ser livremente estruturada à disposição dos sócios, não existiam odeões com poderes específicos e indelegáveis como hoje. Ou seja, de uma estruturação totalmente livre que existia, acabou havendo um engessamento. Há uma queixa quase que exclusivamente com relação a essa parte, ninguém pediu um Código Comercial. Isso saiu da cabeça de um projetista.

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Isso poderia ter sido re­­sol­­­vido com modificações dentro do próprio Có­­digo Civil?

Claro. Quais são os pontos negativos que o senhor vê nesse projeto [que tramita na Câmara dos Deputados]?

Em primeiro lugar, a edição de um Código Comercial depois de apenas dez anos de vigência do Código Civil é uma ideia totalmente anacrônica, pelo menos no Brasil. Vai trazer uma insegurança muito grande, afora o fato de que o projeto é de péssima qualidade. Em segundo lugar, o projeto prevê que o Ministério Público possa requerer a anulação de contratos e negócios jurídicos provando o descumprimento da função social. Mas a função social é um conceito indeterminado e de conteúdo totalmente controverso, e isso trará extrema insegurança ao mundo dos negócios. Em terceiro lugar, há a possibilidade de que o sócio grave as próprias cotas com cláusulas de impenhorabilidade. Isso só existe quando se trata de um bem de família, por exemplo. Como é que ficam os credores? O seu patrimônio é a garantia dos credores. Em quarto lugar, prevê-se a possibilidade de incluir no contrato de sociedade uma cláusula que exclua qualquer sócio da participação nas perdas societárias. Mas existe uma tradição no direito societário de que os sócios participam dos lucros e das perdas. Na liquidação da sociedade, as perdas sociais são imputadas às cotas dos sócios minoritários. Então, isso não pode prevalecer perante credores, mas internamente sim, o que quer dizer que você está prejudicando o minoritário com a autorização da lei. Em quinto lugar, o juiz estará autorizado a nomear um "facilitador" para auxiliá-lo nos processos complexos. Ou seja, o juiz poderá julgar o processo sem ter lido o processo, o que é um disparate. E se o facilitador errou? Em sexto lugar, há um tratamento fragmentado e totalmente deficiente dos títulos de crédito. Em sétimo lugar, pelo projeto, você pode estabelecer juros no porcentual que quiser, ou seja, consagra a usura. Os bancos podem estabelecer juros, que são fiscalizados pelo Banco Central, mas imagine um empresário fixando os juros que quiser.

A questão de definição de empresário é uma das críticas ao projeto, não é?

O projeto estabelece que quem exercer atividade intelectual de natureza literária, artística ou científica contando com colaboradores será considerado empresário. Se ele for caracterizado como empresário, terá os deveres de qualquer empresário, como escriturar livros mercantis, registrar-se na Junta Comercial e, se não fizer isso, está sujeito, por exemplo, à prática de crime falimentar. É um absurdo que escritores, literatos e conjuntos musicais que contem com colaboradores sejam uma sociedade empresária. Isso aí é medieval, só na Idade Média o comerciante era quem estava inscrito nas corporações.

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O novo código não vai ajudar no crescimento econômico do país e até facilitar a abertura de novas empresas?

Abrir novas empresas é uma questão burocrática que um Código Comercial isoladamente não resolve porque há inúmeros outros interesses envolvidos que dizem respeito, sobretudo, a questões fiscais, licenças administrativas e assim por diante. Vai ser ruim porque, com o baixíssimo nível do projeto, vai desestimular a criação de novas empresas e trazer uma insegurança jurídica enorme ao país.

E até o senhor comentou que o projeto não foi discutido entre as classes interessadas...

Não houve um anteprojeto. Nem na ditadura militar ocorreu algo semelhante. Por mais terrível que tenha sido o governo Médici, na época, foi elaborado o projeto de Código de Processo Civil, que foi amplamente discutido. Na ditadura Geisel, houve um anteprojeto magnífico de Lei de Sociedades Anônimas que também foi amplamente discutido. Esse anteprojeto se transformou na atual lei de S/A, que é um monumento legislativo, é uma lei exemplar.

E para quem interessaria esse novo Código Comercial?

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Afora motivações pessoais do autor da obra, me parece que o Congresso está acometido de fúria legiferante, ou seja, ele está retomando a iniciativa de inúmeros projetos de lei a qualquer preço, elegendo alguns claramente desnecessários, como acontece também com o Código Penal.

Então, como podemos resolver o problema do regramento das sociedades limitadas, das relações entre empresas e também a questão do comércio eletrônico?

Não é necessário fazer um Código Comercial para o comércio eletrônico, é algo que se resolve tranquilamente até com uma medida provisória. É um pretexto totalmente falso. E também é falso o pretexto de que se precisa de um Código Comercial porque a doutrina e a jurisprudência comercial estão muito ruins. Acho que é o contrário, o problema de hoje é a proliferação de faculdades de Direito que trouxeram um rebaixamento do nível do direito em geral. Não é o direito comercial que está ruim porque não existe um código, tanto que temos um Código Civil recente de altíssima qualidade e não temos mais civilistas como existiam.

O senhor tem outros hob­bies, fora o trabalho como advogado?

Eu não tenho outro hobby, eu sou pianista profissional.

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Eu vi umas matérias falando que o senhor toca piano. O senhor continua atuando?

Não, no momento estou desempregado [risos].

Mas em casa o senhor toca?

Em casa eu toco de vez em quando, mas estou procurando um lugar para voltar a tocar uma vez por semana, pelo menos.