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O Superior Tribunal de Justiça, por sua 2a. Seção,no julgamento do REsp nº 1.114.398-PR, julgado em 8/2/2012, em acórdão cujo relator foi o Min. Sidnei Beneti, manteve a condenação imposta à Petróleo Brasileira S/A - Petrobrás, em ação movida por cidadão , pescador profissional, em razão de acidente ambiental. O Recurso Especial buscava especificamente equalizar o julgamento das ações de indenização por danos patrimoniais e extrapatrimoniais causados por vazamento de nafta do navio NT-Norma, de propriedade da recorrente, ocorrido em outubro de 2001, no Porto de Paranaguá, fato que suspendeu a atividade de pesca na região pelo prazo de um mês.

O magistrado de primeiro grau entendeu pelo julgar antecipadamente a lide considerando que os aspectos decisivos da causa estavam suficientemente maduros para embasar seu convencimento, afastando a alegação de cerceamento de defesa, desacolhendo a suscitação de ilegitimidade ad causam, reputando estar devidamente comprovada a qualidade de pescador do recorrido à época dos fatos. Em relação às hipóteses de excludentes do nexo de causalidade levantadas pela defesa, afirmou-se estar diante do caso de responsabilidade objetiva do transportador de carga perigosa, na modalidade "risco integral", em que não se admite qualquer causa de excludente de responsabilidade. Destacou-se no decisório do STJ, que, segundo o acórdão objurgado, confirmatório da decisão de primeiro grau, que o vazamento de nafta teria sido ocasionado pela colisão do navio de propriedade da recorrente Petrobrás, e não pelo deslocamento da boia de sinalização da entrada do canal. Entendeu-se, ainda, ser cabível o pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais, diante do sofrimento de monta causado ao recorrido, que ficou impossibilitado de exercer seu trabalho por tempo considerável.

Reafirmou-se o entendimento do enunciado da Súmula n. 54 deste Tribunal Superior, no sentido de que, tratando-se de responsabilidade extracontratual, os juros de mora incidirão a partir do evento danoso. Por fim, quanto à redistribuição do ônus da prova, sustentou-se que, uma vez caracterizada a sucumbência mínima do autor, cabe ao réu o pagamento integral das custas processuais e honorários advocatícios (Súmula n. 326-STJ).

A decisão ora analisada, assim como as que foram por ela confirmadas, embora possa merecer um comentário crítico quanto ao desapreço demonstrado quanto a aspectos que envolvem a legitimidade passiva e a aplicação da teoria mais acertada, manteve com acerto inobjetável os entendimentos anteriormente esposados.

As atividades do Estado, prestadas direta ou indiretamente, podem produzir danos em todas as esferas, seja no âmbito do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Com o advento da CF de 1988 evidenciou-se uma especial preocupação com os danos produzidos pelos agentes delegados da Administração Pública, no caso presente, pelas pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público.

A responsabilidade civil entendida como dever jurídico de qualquer pessoa capaz de oferecer uma resposta, quando por ação ou omissão causar dano ao patrimônio alheio, remonta a tempos imemoriais. Especificamente no caso do aparelhamento estatal, neste incluído, por óbvio, as sociedades de economia mista, como é o caso da Petrobrás, decorre de comportamentos, comissivos ou omissivos, lícitos ou ilícitos, os quais redundam em lesão à esfera jurídica patrimonial do cidadão, configurando, pelo nexo lógico entre tais elementos, a necessidade de reparação, sem quaisquer perquirições subjetivas.

Ao afirmar, pela primeira vez, na história do constitucionalismo pátrio, a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado ao lado das pessoas jurídicas de direito público, a Constituição Federal de 1988 buscou corrigir as distorções da experiência passada. Em se tratando de Administração Pública, a personalidade jurídica é um elemento acessório, que não pode ser utilizado como determinante para a opção do regime jurídico de responsabilidade.

Desta forma, ressalvadas as considerações e explicações devam ser deduzidas mais adiante, é curial afirmar, desde logo, que a responsabilidade do Estado pela reparação de danos causados aos particulares é direta e objetiva, determinada pelo sistema jurídico positivo brasileiro, conforme artigo 37, § 6º da Constituição Federal: "As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

Ainda que a doutrina administrativista tenha evoluído no sentido de enquadrar a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado da Administração Pública indireta no regime jurídico administrativo, esta evolução foi singularmente parcial, tendo seu polo de atração numa interpretação restritiva da noção de "serviço público" referida pelo constituinte.

Mais uma vez, tratou-se de cindir a responsabilidade da Administração Pública não mais em duas metades (se pessoa jurídica de direito público, regime público de responsabilidade objetiva; se pessoa jurídica de direito privado, regime privado de responsabilidade subjetiva), mas agora em três: (1) se pessoa jurídica de direito público (União, Estados-Membros, Distrito Federal, Municípios, autarquias ou fundações autárquicas), o regime de responsabilidade do art. 37, §6º da Constituição Federal; (2) se pessoa jurídica de direito privado (empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações): (2.1.) o regime de responsabilidade do art. 37, §6º, da Constituição Federal se prestadoras de serviços públicos; (2.2.) o regime de responsabilidade geral do Código Civil se exploradoras de atividade econômica.Um dos fundamentos para justificar esse entendimento seria que o art. 173, §1º, II, da CF submeteria as empresas públicas ao regime de responsabilidade civil aplicável aos particulares.

A mesma tranquilidade doutrinária e jurisprudencial, que gira em torno da responsabilização das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, todavia, não ocorre em relação às empresas e sociedades de economia mista que exercem atividade econômica (art.173 da CF). Alguns autores de elevada suposição, sustentam que, nesse caso a responsabilidade é subjetiva, ressalvados o caso previsto no § único do art. 927 do Código Civil que prevê, como regra, a responsabilidade subjetiva por atos ilícitos, podendo ser afastada (i) em casos especificados em lei ou (ii) quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Consagra, excepcionalmente, no regime privado, a responsabilidade objetiva que exsurge diante de atividades de risco. Cumpre lembrar que o art. 43 do CC, ao impor a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público, omite-se em relação às pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Pública, deixando em aberto a interpretação de que estas estariam regidas pelo sistema geral de responsabilidade das demais pessoas jurídicas previsto no art. 927, do Código Civil, ou seja, regime privado. O acórdão lamentavelmente passa ao largo dessa importante discussão.

Neste passo, se a atividade econômica explorada pela Administração Pública fosse tão privada quanto aquela explorada pelos particulares, que sentido teria o art. 173, caput ao condicioná-la, necessariamente, a imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo ou o próprio art. 177 a submeter nítidas atividades econômicas ao monopólio da União? Equiparar a Administração Pública aos particulares é ignorar o que a Constituição sobranceiramente expressa: por detrás de uma atividade econômica explorada pelo Estado-Administração há, necessariamente, um interesse público que dela não se dissocia, não se separa. A empresa pública está concebida para exercer atividade econômica enquanto função estatal. Quando a Administração Pública explora atividade econômica o faz na categoria de atividade administrativa porque o que justifica a sua existência é um interesse público primário subjacente que ora toma a forma de imperativo de segurança nacional, ora de relevante interesse coletivo, ora de uma atividade submetida a monopólio por força de expressa consagração constitucional de um daqueles dois vetores.

Por essa razão, não podemos traduzir "obrigação civil" do art. 173, §1º, II, da Constituição Federal como "responsabilidade civil". É uma interpretação sobremaneira restrita, isolada dos princípios constitucionais informadores de toda a Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – independemente do tipo de atividade que venha a exercer.

Não há dúvida, no entanto, que a Constituição Federal aproxima o regime jurídico das empresas públicas exploradoras de atividade econômica das empresas privadas, ao contrário daquelas que prestam serviços públicos. Não se discute a existência de um regime diferenciado, marcadamente influenciado por normas de Direito Privado, para a Administração Pública indireta incumbida da exploração de atividade econômica. Todavia, há princípios do regime público que não admitem afastamento, seja porque incorporam garantias ao cidadão em face do Estado-Administração, seja porque tradicionalmente informam a própria concepção de Estado, num regime democrático e de Estado de Direito (na fórmula Estado Democrático de Direito).

Como já mencionado, a responsabilidade objetiva não pode prescindir do evento danoso e da participação do agente causador como elementos integrantes de sua caracterização porque configuram o nexo de causalidade. A finalidade é a recomposição da situação, do status quo ante, da forma mais eficiente possível, a ponto de se considerar que o dano sequer existiu. De forma alguma visa a proporcionar enriquecimento sem causa do particular, mas sim uma justa e equânime repartição dos ônus e encargos sociais.

A responsabilidade objetiva representa uma correta distribuição dos encargos entre a coletividade pelo sacrifício do interesse privado motivado em face da supremacia do interesse público.

Não se advoga neste comentário, por evidente, a ideia do ressarcimento a qualquer dano. O dano ressarcível é aquele que se mostre especial, anormal e ofensivo a direito ou interesse legitimamente protegido. A especialidade do dano o faz distinto daqueles casos em que uma atuação geral da Administração utilizando o Poder de Polícia possa acarretar qualquer tipo de diminuição patrimonial ou afrontar interesses dos cidadãos. Neste sentido, até aqui, a decisão parece irretorquível.

Parece-me, todavia, que decisões desse jaez não devam apoiar-se na teoria do risco integral, eis que acolhe a ideia de que a mera comprovação da relação de causa e efeito (nexo causal) entre o evento danoso e a participação do agente público já ensejaria a obrigação de reparação pelo Estado.

A evolução constitucional e doutrinária culminou por desenvolver o que hoje denomina-se, genericamente, teoria do risco, que acolhe duas espécies: a teoria do risco integral e a teoria do risco administrativo. Ambas adotam o princípio da responsabilização objetiva. A primeira consagra a responsabilização objetiva de modo integral, isto é, sem qualquer abrandamento e sem acolher qualquer tipo de excludente. A segunda, mais consentânea com a razoabilidade, é submissa à objetividade na responsabilização, mas aceita certas excludentes (culpa da vítima, força maior, caso fortuito).

Logo, o traço distintivo entre ambas as teorias concentra-se no desprezo dedicado pela teoria do risco integral a fatores circunstanciais (como força maior e caso fortuito) e a um personagem cuja atuação pode ter sido nenhuma ou decisiva para a configuração do evento danoso: a vítima. A aplicação da teoria do risco integral supõe o reconhecimento de qualquer impossibilidade de defesa ao réu em clara afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV).

Reconhecida a ocorrência de dano ao patrimônio do cidadão e o seu nexo de causalidade com a atividade estatal, o mandamento constitucional impõe a reparação pelo Estado, de forma objetiva, e dispensada a comprovação da culpa. O mesmo se aplica por força do art. 927 do CC às empresas privadas que exercem atividades de risco.

No entanto, como já referido, existem certas hipóteses em que o caso concreto recomenda exclusão total (excludentes) ou parcial (atenuantes) da responsabilidade do Estado. São elas: caso fortuito e força maior, culpa da vítima, estado de necessidade e ato ou fato de terceiro.

O caso fortuito e a força maior retratam situações que afastam ou diminuem a responsabilidade estatal. Os dois institutos, quanto aos seus respectivos conceitos, até hoje são objeto de divergência doutrinária. Para alguns, caso fortuito é o evento imprevisível decorrente da atividade humana, no caso, falha da máquina administrativa, e por tal característica enseja responsabilidade do Estado (ex: explosão dos fios da rede elétrica), enquanto força maior é o evento imprevisível decorrente da ação da natureza, inevitável pelo Estado, não podendo deste modo ser propiciador da referida responsabilidade (ex: tufão, terremoto, dilúvio).

Algumas definições encontradas na doutrina são exatamente inversas. Considera-se caso fortuito como o evento decorrente da natureza e força maior como aquele oriundo da ação humana. Outras, situam as ocorrências praticamente no mesmo patamar.A distinção não oferece nenhuma dificuldade. Em se tratando de caso fortuito, o traço marcante é a imprevisibilidade. Se o evento pudesse ser previsto, certamente poderia ser evitado. Já em se tratando de força maior, o que transcende é a irresistibilidade. O evento, em muitos casos, embora previsível, afigura-se inevitável por sua força maior. Nenhuma atenuante ou excludente foi verificada no caso concreto. Daí, porque, no juízo singular, julgou-se antecipadamente a lide.

De qualquer sorte, o acórdão ora comentado decidiu corretamente, inobstante pudesse ter se apercebido da impropriedade em utilizar-se do rótulo "risco integral", assim como, para pacificar a disceptação, perdeu a oportunidade de debruçar-se sobre a questão distintiva que envolve as empresas estatais prestadoras de serviços públicos daquelas que exercem atividade econômica.

Romeu Felipe Bacellar Filho é advogado e professor Titular da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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