Passados alguns dias desde as barbáries praticadas por um grupo terrorista em Paris, o clima em toda a Europa e por que não dizer em todo o mundo ainda é de enorme tensão, sobretudo porque os fatos desencadearam debates acerca de matérias ainda controversas perante a população.
Ainda que a discussão envolva o aspecto religioso, a questão dos direitos humanos e, até mesmo, tratados internacionais, o que pretende se discutir no momento é a controvérsia acerca de eventuais limites à liberdade de expressão, não obstante este seja um direito humano de primeira dimensão, primário e universal, um dos alicerces da dignidade da pessoa humana.
O atentado terrorista jogou luz sobre duas posições divergentes acerca da referida liberdade: de um lado, há quem a entenda como ampla e sem limites, considerando que em caso de desproporção em seu exercício deve haver uma reparação ao indivíduo e/ou classe afetados mas, jamais, qualquer tipo de censura estatal anterior. Por outro, há quem defenda certa restrição, inclusive por imposição de lei, quando colidirem direitos fundamentais/humanos, dentre os quais o direito de liberdade religiosa.
Não nos parece razoável a posição do segundo grupo. O filósofo do direito Ronald Dworkin, no clássico e indispensável "O direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana", leciona que a liberdade de expressão tem, por um lado, uma importância instrumental, ou seja, não é relevante apenas porque as pessoas têm o direito moral intrínseco de dizer o que pensam, mas porque a permissão de que elas o digam produzirá efeitos benéficos para o conjunto da sociedade. Nesse contexto, a segunda justificação da liberdade de expressão pressupõe que ela é importante não apenas pelas consequências que produz, mas porque o Estado deve tratar todos os cidadãos como agentes morais responsáveis, em uma sociedade política justa.
A partir desse cenário, fica evidente o empobrecimento da tese limitadora da liberdade de expressão. A revista "Charlie Hebdo", ainda que tenha, aos olhos de boa parte dos analistas, exagerado no sarcasmo em tema tão delicado, exerceu o seu direito de livremente dizer o que pensa, fortalecendo assim não apenas a opinião da publicação, mas a própria concepção de democracia. Ademais, como precisamente observa o professor norte-americano Owen Fiss, a liberdade de expressão deve ser entendida para muito além da ação isolada de um indivíduo ou de uma instituição, uma vez que esta se refere e reproduz o estado de coisas sociais.
Também é necessário frisar que a liberdade de imprensa, no presente caso, não pode ser compreendida como sinônimo de gozo de um direito absoluto, onde tudo se pode sem sanção, uma vez que eventuais demandas por abusos podem (e devem) ser reclamadas pelo caminho do poder judicante, jamais pela via da intolerância. Ou de atos de terror.
Saliente-se, ainda, que a proteção à liberdade de expressão por meio dos veículos de comunicação social possui o condão também de assegurar ao indivíduo comum o leitor, o ouvinte ou o telespectador que não haja qualquer impedimento no seu direito fundamental à informação, o que implica dever de abstenção do Estado e de terceiros. Não à toa, a doutrina e a jurisprudência pátrias entendem os direitos de livre expressão e à livre informação como valores essenciais para a existência humana digna, necessários ao próprio desenvolvimento pleno do indivíduo.
O constitucionalista alemão Peter Häberle evidencia que essa cultura de dignidade humana hoje esboçada em termos universais desenvolve uma força diretamente fundamentadora da democracia e isso carrega efeitos à liberdade de comunicação. Tais consequências, sob esse viés, não servem apenas de intermediário entre cidadão e Estado, mas possibilitam também a vida de esferas parciais da sociedade civil. Todo o conjunto de grupos, de associações, do mercado, dos movimentos culturais e até as igrejas, tomando-se por conta o tema da liberdade religiosa se nutrem da liberdade de comunicação. Assim, importa para ele reconhecer que a liberdade em questão serve como âmago da democracia fundamentada na dignidade da pessoa humana e orientada segundo o pluralismo.
Há de se ressaltar, por fim, que o debate atual sobre a liberdade de expressão trazido pela mídia e, por via reflexa através das redes sociais, evidentemente absorve o calor da emoção e, de certa forma, opera por culpar, de um lado, a religião islâmica pelos atentados, ou a imprensa livre, por outro. No Brasil, ainda pior, há quem misture, como o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, os trágicos incidentes que tiveram lugar em Paris com o plano de regulação da mídia idealizado pelo governo federal.
A diminuição da esfera de compreensão dos fatos e a leitura estreita acerca da liberdade de expressão, indubitavelmente, pouco contribuem para o que realmente importa: o respeito à tolerância de todos os lados, um inequívoco pluralismo de ideias, o que, por si, fundamentaria uma verdadeira cultura de paz.
Denian Couto Coelho, professor de Direito Constitucional, é mestre em Direitos Fundamentais e Democracia. Jornalista e Advogado.
Gilberto Andreassa Junior, professor universitário, é mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo.
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