Já se passou do tempo em que livros, saliva e giz faziam uma faculdade de direito. A evolução da tecnologia – e a criatividade – trouxeram diversas outras ferramentas para o curso e também para os operadores do direito. As séries de TV norte-americanas, por exemplo, mostram vários exemplos de aplicabilidade e interpretações das leis no país.
É preciso tomar cuidado, porém, com as “pegadinhas” que os episódios podem pregar quando vistos em terras tupiniquins, onde o direito é baseado na civil law, enquanto os norte-americanos seguem a common law. “Apenas sob esse aspecto, é possível escrever um livro”, aponta o professor da Faculdade de Direito Universidade Federal do Paraná (UFPR), Luiz Guilherme Marinoni.
Além da origem – enquanto o sistema brasileiro é da cultura greco-romana, o norte-americano é de origem britânica –, basicamente, como explica o advogado norte-americano Brandall Nelson, os países de common law utilizam casos jurídicos, e não a lei propriamente dita, como fonte principal. “Os juízes possuem grande papel no desenvolvimento de futura lei”, observa.
Mesmo com características próprias e inseridos em culturas distintas, os especialistas consultados pela reportagem são unânimes em apontar que cada sistema pode ser aperfeiçoado com a observância do outro. “Algo que pode ser aprendido por nós é a função das cortes em proferir decisões que sirvam para regular os casos futuros”, acredita Marinoni.
Entenda, abaixo, algumas peculiaridades do sistema jurídico norte-americano e seus exemplos em consagradas séries de TV do país.
Júri
A capacidade argumentativa de defesa e acusação nos júris em que atuam é a base da série Boston Legal . Em um dos episódios (9º, da 2ª temporada), há um interessante embate entre a advogada Shirley Schmidt e a promotoria em um caso envolvendo tortura. A instituição tribunal do júri é considerada uma das mais importantes da Constituição norte-americana. Enquanto no Brasil jurados só são convocados em casos de crimes dolosos contra a vida, nos EUA, a previsão ocorre em toda esfera criminal e até em algumas ações cíveis de duas formas. “São duas características muito fortes do common law que aparecem no júri: a prevalência da oralidade e a possibilidade de passar a responsabilidade de uma decisão final polêmica para o povo”, observa Andreia Costa Vieira, professora de Direito da Universidade Mackenzie. A escolha dos jurados e a forma de se tomar as decisões também são diferenciadas. “A deliberação do júri tem que ser unânime, ou seja, eles conversam, enquanto aqui há uma votação secreta e a decisão prevalece por até um voto de diferença”, observa o professor de Direito Penal do Centro Universitário Católica de Santa Catarina, Diego Bayer.
Acordos
Além de contar o dia a dia dos detetives e promotores de Nova York, a sérieLaw & Order , uma das mais famosas e premiadas dos Estados Unidos , mostra em muitos dos seus episódios esse aspecto jurídico norte-americano acordos entre a defesa e a promotoria . Diferentemente do Brasil, onde promotores e advogados praticamente não se comunicam sobre os casos em que atuam, nos EUA, esse diálogo não só é comum como gera muitos acordos antes mesmo de a ação caminhar: é a plea bargains, ou seja, negociação do pleito. “O réu pode confessar o crime como resultado de negociações com a acusação, o que resulta na recomendação de abrandamento da sentença”, observa Brandall Nelson, advogado norte-americano. Ele explica que, nas ações cíveis, os acordos ocorrem com maior frequência, o que, além de diminuir a quantidade de recursos, gera menos custos para a Justiça. Em um episódio de Law & Order (“Double Down” – 7ª temporada, 19º episódio), a melhor pista para encontrar um motorista sequestrado é fazer um acordo com um dos assaltantes, mas o criminoso só está disposto a fazer o pacto se não for a instaurada a investigação sobre a morte de um policial em que ele estava envolvido.
Formação
A mente brilhante do jovem Michael Ross é o plano de fundo deSuits , seriado que também gira em torno de casos jurídicos, com um toque de humor sarcástico. O garoto, porém, foi expulso e nunca obteve o diploma, o que o impediria de atuar no escritório de Harvey Specter, outro protagonista da trama. Porém, ambos mentem que Mike é um graduado que frequentou a Escola de Direito de Harvard. No Brasil, a formação jurídica começa naturalmente em um curso de direito. Nos EUA, não. É preciso que o indivíduo tenha uma graduação anterior em qualquer área para, só depois, ingressar no estudo das práticas jurídicas. “É interessante porque o iniciante já é mais maduro, ou seja, é impossível ver juízes ou promotores muito jovens lá”, explica o professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, Jorge Octávio Lavocat Galvão. Depois da graduação, o sistema norte-americano já é mais parecido com o brasileiro e é preciso ingressar em uma instituição equivalente à Ordem dos Advogados daqui.
Atuação
Um dos exemplos clássicos de diferenciação entre a atividade advocatícia brasileira e norte-americana está na natureza das sociedades profissionais. “No Brasil, a função do advogado não pode ser mercantilizada e as sociedades se enquadram apenas como simples, diferentemente dos Estados Unidos, onde a advocacia apresenta aspecto de negócio”, explica o professor de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público, Jorge Octávio Lavocat Galvão. Além disso, há aqui uma restrição legal para propagandas de prestação de serviços advocatícios. “Lá é muito comum haver anúncio de advogados na televisão”, aponta Galvão.
A série Better Call Saul , spin-off (continuação) sobre o advogado de Walter White no consagrado Breaking Bad, mostra justamente essa diferença em um dos seus episódios. Na trama, Saul Goodman – que ainda é James M. McGill – começa a “se dar bem” nos negócios quando arma uma cena de salvamento na desmontagem de seu outdoor de propaganda ao lado de uma via movimentada de Albuquerque (Novo México), onde atua.
Eleição
No Brasil, para que qualquer juiz ou promotor possa ingressar na carreira é preciso realizar um concurso público, depois de cumprido um período de atuação jurídica. Já no sistema judiciário federal norte-americano e na maior parte dos estados do país, ocorrem eleições ou indicações políticas para o preenchimento desses postos. “Os cargos ganham viés mais político do que técnico, o que pode conferir um aspecto mais democrático, mas, ao mesmo tempo, influenciar na imparcialidade das decisões”, aponta o professor de direito constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público, Jorge Octávio Lavocat Galvão. Praticamente todo o enredo do seriado The Good Wife gira todo em torno dessa “política judicial”. Na história, a personagem central Alicia Florrick se vê obrigada a voltar a trabalhar fora de casa depois que o marido, o promotor do Condado de Cook, Peter Florrick, é preso devido a um escândalo envolvendo prostituição e corrupção.
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