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 | Jane de Araújo/Agência Senado
| Foto: Jane de Araújo/Agência Senado

O posicionamento do presidente Michel Temer sobre o aborto, divulgado extraoficialmente no início desta semana, fortalece os movimentos pró-vida no Brasil. Segundo trechos da nota técnica, divulgada pelo jornal O Estado de São Paulo, o presidente da República defende que a vida do bebê deve prevalecer sobre o interesse da gestante. Ele também teria ressaltado que decisões sobre o tema cabem ao Congresso Nacional.

A opinião de Temer sobre o assunto teve de ser emitida devido à convocação da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber. Ela é relatora da ação ajuizada pelo PSOL que pede a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, e deu cinco dias para que o presidente, a Câmara e o Senado se pronunciassem, mas até agora não houve divulgação oficial desses posicionamentos. Ainda assim, a partir do que já veio a público, movimentos e juristas que defendem a vida se manifestaram satisfeitos com a posição do Planalto. Por outro lado, os favoráveis ao aborto apresentaram duras críticas à postura de Temer. O Justiça & Direito consultou estudiosos pró e contra o aborto para opinarem a partir do que já foi divulgado sobre a nota técnica do Planalto.

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Regina Beatriz Tavares, advogada e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), considera correta a manifestação do presidente Temer de que a expectativa de nascer do feto se sobrepõe, em geral, aos interesses da mulher. “A regra da Constituição é o direito à vida. As exceções, como os casos de aborto permitidos pelo Código Penal e a previsão de pena de morte em caso de guerra, dão-se em circunstâncias excepcionalíssimas. Não é possível transformar a exceção em regra”, afirma.

A advogada destaca que o Código Penal, apesar de datar de 1940, está bem amparado pelas recentes descobertas da medicina. Ela cita que pesquisas mostram que, apesar de o córtex cerebral só se formar no terceiro mês de gestação, a função da sensação de dor já surge no cérebro do feto antes da quarta semana. “Na criminalização do aborto a ideia é a proteção do ser humano em gestação, que é o ser humano mais frágil que pode existir”, frisa Regina Beatriz.

Lília Nunes dos Santos, advogada, mestre em Direitos Humanos e autora do livro A atual discussão sobre a descriminalização do aborto no contexto de efetivação dos Direitos Humanos, também vê como um acerto a posição do presidente, que escolheu confirmar a vontade popular de preservar a vida do nascituro. Ela lembra que, em repetidas decisões, o Congresso Nacional tem optado, reiteradamente, por não estender o direito ao aborto para além dos casos já previstos pelo Código Penal.

Para Lília, o atual regramento sobre o tema respeita, além da Constituição, os tratados de Direitos Humanos de que o Brasil é parte. “A disciplina do crime de aborto prevista no Código Penal em vigor está em consonância (...) com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, como os tratados que versam sobre a primazia da proteção dos direitos e interesses da crianças (seja a Convenção e Declaração Universal de Direitos da Criança, seja o Pacto de San José da Costa Rica, que protege a vida humana desde a sua concepção”, destaca. A advogada lembra também que mesmo os tratados sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos preveem que a responsabilidade, particularmente quanto ao fruto da concepção, é um limite para o exercício da liberdade reprodutiva e sexual.

Regina e Lília também concordam com o presidente Temer no tocante à afirmação de que o STF não é o órgão competente para decidir sobre a questão. Segundo Lília, uma decisão do STF sobre o tema seria uma violação do princípio da separação dos poderes, consagrado pela Constituição e basilar da democracia. De acordo com Regina, a ação deveria ser julgada improcedente pelo tribunal.

Bioética

Para o filósofo Francisco Razzo, autor do livro A Imaginação Totalitária, a questão do aborto não é um problema de saúde pública, nem uma preocupação meramente religiosa, mas um problema especificamente da filosofia, discutido pela bioética. Segundo Razzo, o tema tampouco pode ser monopólio das mulheres: “Se o assunto diz respeito à bioética, então não basta ser portador de útero para poder manifestar um posicionamento sobre o aborto, mas ter necessariamente um cérebro capaz de avaliar crenças e decisões”, diz.

O filósofo também questiona a posição corriqueira de que no debate sobre a descriminalização do aborto estariam em conflito o direito à vida e o direito à autonomia do corpo. Para Razzo, esse conflito é só aparente, “porque não há direito da autonomia do corpo caso não haja o direito à vida”. Essa centralidade da vida na discussão sobre o aborto, por sua vez, surge de duas premissas: a premissa moral de que “todas as pessoas têm direito à vida” e a premissa de que “o ser humano é desde a concepção uma pessoa”. Esta última premissa, para o filósofo, decorre do autodesenvolvimento para vida racional e consciente futura, que é condição inerente ao embrião humano.

A conclusão desse raciocínio, para o filósofo, é o desmoronamento do argumento que apela para a autonomia do corpo da mulher. “O argumento da autonomia esbarra numa grande dificuldade: o corpo do embrião é ontologicamente distinto do corpo da mulher”, afirma Razzo. Trocando em miúdos, o embrião é uma pessoa humana totalmente distinta da própria mãe e, por isso mesmo, detentora de direitos que devem protegê-la, inclusive, de escolhas da própria mãe. “A liberdade humana não é absoluta. Não se deve fazer tudo o que se deseja fazer. A vida – concebida como um direito fundamental – impõe pelo menos um limite intransponível à liberdade não só da mulher em particular, mas à toda escolha humana”, completa o filósofo.

Crítica

Luciana Boiteux, advogada e candidata a vice-prefeita do Rio de Janeiro pelo PSOL em 2016, é uma das autoras da ADPF 442 no STF. Para ela, a manifestação do presidente Temer confirma a visão que retira da mulher a autonomia e a capacidade de decidir e reforça a perspectiva de retrocesso do atual governo, que não tem mulheres no primeiro escalão e não prioriza políticas de igualdade para as mulheres. “A política desse governo para as mulheres é elas se manterem no lugar que a sociedade tradicional atribui a elas. Essa resposta segue a perspectiva de ‘bela, recatada e do lar’, da mulher reprodutora que tem o papel essencialmente de gerar filhos”, critica Luciana.

A advogada lembra também que as pesquisas mostram que as mulheres que mais sofrem com os abortos clandestinos são negras e pobres. “A questão não é simplesmente garantir que a mulher não possa escolher: isso é uma simplificação de um problema que vai muito mais além. Essa mulher não escolhe livremente não ter uma criança, ela é condicionada por questões econômicas, emocionais e sociais”, afirma.

Luciana destaca que o atual parlamento não é representativo da sociedade brasileira. “O percentual de homens, brancos, heterossexuais, pertencentes às classes mais abastadas e de maior idade . A representação das mulheres, de jovens e de negros não é proporcional no parlamento”, resume. Na visão da advogada, ao contrário do que Temer afirma, é justamente porque o parlamentou interditou o debate que o direito dessa minoria deve ser garantido. “Numa democracia, é papel do STF ser guardião da constituição e ser contra-hegemônico. É uma questão de direitos”, diz.

Na opinião da advogada Tatiana Viola de Queiroz, especialista em direito do consumidor na área da saúde, como o Brasil é um estado laico, o governo não deveria se manifestar, nem contra, nem a favor, do aborto. Para ela, a posição apresentada por Temer vem em um momento em que diversas decisões políticas polêmicas estão sendo tomadas, e a manifestação desta opinião teria o intuito de amenizar o clima social.

“Isso tem muito mais a ver com posições religiosas. Por questões exclusivamente de saúde, nos casos em que está sendo solicitada, a alteração da lei é necessária”, considera a advogada. “Cabe uma reflexão se essa proibição diminui ou incita que seja feito aborto”, acrescenta.

Tatiana ressalta que o STF não deveria ser influenciado pelo Executivo para decidir sobre o tema, mas reconhece que na prática isso não é garantido. “Esse posicionamento não deveria exercer nenhum tipo de influência, não tem base jurídica ou constitucional para que haja peso. O STF por si é um tribunal que deveria zelar pela Constituição, mas a gente vê que têm sido tomadas muito mais decisões políticas do que jurídicas”, diz.

Amicus Curiae

Ângela Vidal Gandra Martins, PhD em Filosofia do Direito, é uma das advogadas que assinou um pedido de amicus curiae na ADPF 442. Para Ângela, a ação em curso no STF não tem nem sujeito, uma vez que um partido político não tem legitimidade para recorrer ao STF em matéria de políticas públicas, contornando o debate parlamentar, nem objeto, já que não há descumprimento de preceito. Pela jurisprudência, há uma presunção de constitucionalidade do Código Penal, que está em vigor desde 1940 e foi recepcionado pela Constituição em 1988. “É um paternalismo absurdo que um partido político recorra ao STF. Eles representam a vontade popular tanto quanto os outros partidos”, resume.

Na discussão de mérito, a advogada considera que nenhum dos preceitos invocados na ação para defender o aborto até a 12ª semana se aplica ao caso, nem pela letra lei, nem pelo propósito dela. Ângela destaca também que os direitos reprodutivos são direitos positivos e não negativos. Os direitos reprodutivos garantem o direito das mulheres à maternidade, se o Estado as estiver impedindo, como ocorre na China.

Colaborou: Joana Neitsch

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