Inegável que vivemos momentos de crises múltiplas no Brasil: política, econômica, administrativa, valorativa etc.
Estas estão nos levando a uma verdadeira estagnação econômica e social, além de conduzir as relações interpessoais a níveis de tensão cada vez maiores e à possibilidade real de conflitos, não apenas de ideias, mas efetivamente físicos.
Dos principais sintomas disso é a confrontação ideológica extrema travada entre os indivíduos, favoráveis e desfavoráveis, quase que de forma cega, ao governo federal que aí está. O nível de intransigência e paixão é tal, que as discussões verdadeiramente assemelham-se a debates futebolísticos, onde simplesmente o que vale é a devoção a um dos lados.
Nestas discussões, pouco importa o Estado Democrático de Direito, que a duras penas conquistamos, quiçá a Constituição da República. O que efetivamente interessa é a vitória ideológica, total e completa, sobre o “adversário”.
Claro que isso é absolutamente perigoso, pois atenta contra a própria paz social!
No entanto, todas estas crises advêm de conflitos conceituais, ou seja, derivam do confronto de significados atribuídos ao mesmo significante, de maneira que ao se falar de honestidade há pessoas que entendem “a” e outras que compreendem “b”. No momento em que os intérpretes, que somos todos nós, têm de compartilhar suas concepções, estas se mostram conflitantes, o que leva a conflitos entre as pessoas.
Por isso, ao se falar de todas estas crises, em verdade estamos a referir apenas os efeitos de uma grande crise: a crise conceitual. Já não mais se tem uma concepção coletiva firme do que seja “honestidade”, “probidade”, quiçá do que venha a ser “republicanismo” e “escorreito tratamento da coisa pública”.
Estamos a tratar de uma verdadeira anomia conceitual, ou seja, um estado social onde desaparece a noção coletiva de padrões de conduta, de maneira que os indivíduos, em conflitos íntimos, encontram dificuldade para conformar-se às contraditórias exigências das normas sociais.
Em todo este caldo ainda há de se adicionar um elemento de complexidade, que é a prévia pluralidade de valores sociais, que acabam informando o significado dos conceitos. Muitas vezes uma pessoa com valores de caráter individualista entenderá o conceito de “honestidade” e “probidade” de forma diversa de um indivíduo com valores com maior carga coletivista. De forma sumária, as concepções valorativas individuais de cada uma das pessoas que forma a coletividade acabam por informar de maneira decisiva a significação a ser atribuída aos conceitos partilhados por este grupo de pessoas.
Claramente este caminho não nos levará a lugar diverso do que o que atualmente nos encontramos, que é o da profunda discórdia, que acaba por desaguar em diversas crises, cada vez mais profundas.
Devemos lembrar que este estado de crise, por mais contraditória que esta denominação seja, teve início ainda em 2013, com as manifestações ocorridas em meados daquele ano, quando milhares de pessoas saíram às ruas de diversas cidades brasileiras reivindicando as mais diversas pautas, muitas delas inclusive conflitantes. Podemos inclusive falar em um estado de insatisfação coletiva, mas não é possível apontar uma causa comum, um objetivo.
Evidentemente, naquele momento, a anomia conceitual de que falamos agora em nada atenuou-se. Muito pelo contrário! Acabou por incrementar-se, da forma como fica evidente nos embates ideológicos acima mencionados, que em verdade são discordâncias conceituais, discordâncias sobre o significado de determinados significantes.
Isso tudo parece muito básico, mas é exatamente o retrato do que estamos vivendo. Não se consegue chegar a um acordo do que seja honesto ou não, do que seja correto ou não.
Neste ponto não será o Direito que nos ajudará, afinal este também é refém dos significados atribuídos aos signos e significantes que materializam o ordenamento jurídico.
O que temos nas mãos, gostemos ou não, é um problema filosófico, um problema de atribuição de sentido, que apenas pode ser resolvido com o resgate dos conceitos, um necessário resgate histórico dos conceitos, que os fixe, não os engesse, mas que venha a provê-los com o mínimo grau de apego a situações concretas, às situações do mundo da vida.
Precisamos ter a certeza de que avançar o sinal de trânsito é efetivamente errado, não que pode vir a ser considerado “atitude de otário” a partir de determinada hora da noite, pois afinal o sujeito deveria saber que a região onde ele estava parado, obedecendo à sinalização e às regras de trânsito, era perigosa e acabou expondo-se ao perigo graciosamente.
Precisamos saber quais são as regras vigentes, pois há vários conjuntos de regras convivendo, a grande maioria deles conflitantes, sem que haja um regramento de aplicação, ou seja, quando vale uma e quando vale a outra.
Claro que aqui não estamos a falar de regramentos unicamente de natureza jurídica, mas das mais diversas naturezas, que acabam por influir diretamente no comportamento social.
Devemos ignorar o ordenamento para punir corruptos? É possível nomear alguém Ministro de Estado apenas para evitar sua prisão?!
Estas são questões absolutamente relevantes, para as quais temos as mais diferentes respostas, das mais diversas naturezas.
Os conceitos não podem ficar à disposição dos intérpretes, com vistas a apenas servirem de significantes a ter seus significados providos ao bel prazer do sujeito. Há uma identidade por trás de cada conceito, também há limites semânticos e hermenêuticos, necessariamente derivados desta historicidade.
Há toda uma carga histórica que suporta (ou deveria suportar) o conceito de honestidade ou o conceito de probidade, que necessariamente deve acompanhá-los e limitar e, até mesmo prover seu sentido, de modo a defini-los.
Em suma, se faz absolutamente necessário ultrapassar a anomia conceitual que se abate sobre nós, e um dos caminhos para isso é a historicidade de cada um destes conceitos, que proverá seu significado com base nas delimitações semânticas e hermenêuticas que exsurgirão.
Se assim não for, devemos nos conscientizar que enfrentaremos ainda mais turbulências, para dizer o mínimo...
*Luis Henrique Braga Madalena, advogado; diretor Geral da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst; mestre em Direito Público pela UNISINOS-RS (CAPES 6); especialista em Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica, vinculado ao CNPq, e do grupo DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PR, mMembro do Instituto dos Advogados do Paraná – IAP; coordenador do Curso de Especialização em Direito Constitucional da Academia Brasileira de Direito Constitucional.
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