O recente bloqueio (e desbloqueio) do What´s App por determinação judicial possui contornos bem mais complexos do que a análise superficial consegue identificar. Embora seja possível taxá-lo de autoritarismo, há outras camadas jurídicas a serem evidenciadas. A ordem ilustra uma série de dificuldades para as quais o direito e seus operadores não estão preparados a lidar.
O primeiro empecilho está na própria compreensão do caso. Não se sabe quais foram os fundamentos invocados pela magistrada da 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo (SP) para determinar a suspensão das atividades do aplicativo. Isso porque o processo tramita em segredo de justiça. Sabe-se apenas que, em investigação criminal, o juízo teria determinado à empresa, sob pena de multa, a apresentação de dados sobre um usuário do aplicativo – ordem essa que teria sido descumprida. De acordo com informações noticiadas pela imprensa, o What´s App teria argumentado que a apresentação desses dados seria impossível, pois as conversas dos usuários não são armazenadas em servidores.
Sem conhecer os demais detalhes do caso (quais dados foram solicitados; qual o valor da multa imposta; quais outras medidas a juíza determinou antes de ordenar o bloqueio do aplicativo; qual o fundamento normativo por ela utilizado; se houve ponderação de valores em sua decisão), é no mínimo apressado formar um juízo de valor quanto à decisão judicial. Mas isso não significa eximir o Judiciário de crítica.
Esse poder ainda é demasiadamente fechado, tanto em sua estrutura administrativa quanto em sua atuação propriamente jurisdicional. A Constituição impõe a publicidade dos atos processuais e, excepcionalmente, autoriza sua restrição visando à preservação da intimidade. Mas isso desde que o sigilo não prejudique o interesse público à informação. Diante da repercussão nacional da ordem, a decisão deveria ter sido imediatamente divulgada – ainda que omitindo os nomes e dados pessoais dos indiciados, de modo a não prejudicar as investigações. Da maneira como o caso foi conduzido, milhões de brasileiros tiveram sua liberdade de comunicação limitada sem qualquer fundamento conhecido e sem prévia notificação. Trata-se, portanto, de um ato de fé: não sei por que meu aplicativo foi silenciado. Mas devo crer que a restrição é válida. Até porque não conheço os desígnio divino-judiciais e, portanto, não posso rebatê-los. Resta-me aceitá-los.
Em segundo lugar, o fato evidencia a dificuldade de o juiz brasileiro enxergar as consequências de suas decisões. Não raramente, o conflito apresentado ao juiz situa-se num contexto que a estrutura do processo esconde. Ao destacar o conflito individual de seu contexto social, o processo simplifica a resolução da causa, mas esconde elementos relevantes para a decisão.
O juiz tem o poder de determinar a suspensão do aplicativo. Assim como, analogamente, tem o poder de determinar a um hospital público que extinga imediatamente os contratos de trabalho de empregados terceirizados e realize concurso público. Mas, tanto num caso quanto no outro, a solução jurídica é o menor dos problemas. O verdadeiro drama está nas consequências fáticas do julgamento. No primeiro caso, todos os usuários do aplicativo foram afetados por uma decisão que não lhes dizia respeito. No segundo caso, os pacientes do hospital não terão funcionários para atendê-los. Resolve-se um problema, mas cria-se outro incomparavelmente maior.
Nos últimos anos, o juiz brasileiro ganhou amplos poderes para fazer cumprir suas determinações. O Código de Processo Civil (seja o de 1973 ou o de 2015) autoriza o juiz a adotar qualquer medida necessária e adequada para o cumprimento de suas ordens. Mas esse ganho de poder não foi acompanhado do devido aumento de responsabilidade. Tampouco houve acréscimo de criatividade. A magistratura, em grande parte provocada pela advocacia, viciou-se na imposição de multa (um mecanismo quase inócuo, principalmente com as mudanças previstas no novo Código de Processo Civil e no PLC 168/2015) e na indisponibilização de páginas de internet. A derrubada do YouTube no caso Ciccarelli e, agora, a suspensão do What´s App, comprovam essa prática.
Decisão adequada exige uma dose de criatividade. A busca e apreensão de dados, intervenção pontual na empresa ou mesmo a prisão do responsável pela informação – medida polêmica, mas ainda assim menos restritiva que a suspensão do serviço – seriam alternativas ao bloqueio do aplicativo.
A adoção de qualquer desses meios, entretanto, exige resposta a uma questão prévia. O What´s App tinha o dever de fornecer os dados requisitados pela magistrada?
A empresa alega que as conversas dos usuários não são armazenadas em servidores. De fato, ela não é obrigada legalmente a manter esses registros. O Marco Civil da Internet exige apenas a manutenção, por seis meses, de informações referentes à data e hora de uso do programa a partir de um determinado endereço IP. Ótimo para a privacidade do usuário, péssimo para o combate à ilicitude. Com a migração do consumidor de serviços de telefonia para o What´s App, Skype e congêneres, a ausência de registros impossibilita a investigação de crimes e ilícitos como a disseminação de fotos e vídeos íntimos.
Publicidade dos atos processuais, motivação das decisões, criatividade, impactos do processo sobre terceiros, privacidade na rede e responsabilidade. Eis o emaranhado de questões que o bloqueio do What´s App suscita. Um emaranhado que, se não desfeito, corre o risco de tornar-se nó cego.
* Jordão Violin é doutorando e Mestre em Direito pela UFPR, professor da PUCPR, advogado.
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