Foi aprovada no Senado a proposta de Emenda à Constituição que pretende incluir a vaquejada como uma manifestação cultural brasileira (Proposta de Emenda 50/2016). A proposta, como se lê no site do Senado “Acrescenta o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal, para permitir a realização das manifestações culturais registradas como patrimônio cultural brasileiro que não atentem contra o bem-estar animal.” O pano de fundo da questão é a tentativa de se contornarem os efeitos da decisão do STF que considerou a prática da vaquejada atentatória à integridade dos animais. Segundo se noticiou com fartura, a decisão do STF deflagrou uma pronta reação de Senadores dos estados em que a prática é comum. A resposta encontrada, e posta em prática a jato, foi emendar a Constituição.
Como todo bom tema jurídico, a questão rende margem a várias análises. As mais óbvias são a questão relativa ao bem-estar dos animais e a edição de ato normativo que pretende se dirigir diretamente a contornar uma decisão do STF. Contudo, esses enfoques não me parecem ser os mais relevantes. A questão fundamental me parece dizer respeito a discutir para que serve afinal uma Constituição? Será que a tentativa de regular pela via da Constituição temas como a vaquejada não demonstra a própria disfuncionalidade da ideia de que temos acerca desse tema? Arrisco dizer que sim.
A ilusão de que tudo deva ser alçado ao patamar constitucional conduz a um processo persistente de erosão da normatividade constitucional.
A força da Constituição reside na capacidade de a sociedade entender que nelas se harmonizam as expectativas de um povo. O texto constitucional deve ser uma espécie de consenso mínimo entre os atores sociais. Seu valor intrínseco está no entendimento que aquele texto deve ser prestigiado acima de circunstâncias passageiras, pois ele representa algo de valioso que merece ser preservado. É na constante renovação dessa crença que pode dar longevidade a uma Constituição, pressuposto necessário para estruturar um projeto de Nação. Em suma: a força normativa da Constituição reside na vontade que um povo tem de cumpri-la. E isso depende de se reconhecer a ela esse caráter especial. Se não for assim, ela não passa de uma folha de papel, uma lei como outra qualquer sujeita à disposição do Poder Político e dos seus projetos de momento.
No Brasil estamos abusando da vulgarização da Constituição. Por um lado, os difíceis consensos em uma sociedade plural e desigual conduziram a uma Constituição longa e ambígua que se estendeu por diversos temas. A desconfiança na Lei e no Legislador conduziu a que a ideia de garantia que se associa usualmente às normas jurídicas fosse transplantada para a Constituição. Institui-se assim a crença de que para algum instituto ser relevante ele deve ter status constitucional, o que incentiva os mais diversos grupos de pressão a integrar suas pautas diretamente naquele texto. Por outro lado, essa hipertrofia de temas conduz à necessidade de programas de governo exigirem a repaginação da Constituição para atender às circunstâncias políticas. Esse estado de coisas conduziu, para além de uma Constituição extensa, a uma sucessiva necessidade de se alterar o seu texto. Apenas para ilustrar, temos 91 emendas desde 1988 (o que dá uma média superior a 3 emendas por ano).
Cada vez menos as pessoas olham para a Constituição e reconhecem nela o necessário elemento de consenso, subjacente à sua própria concepção jurídica.
Nessa perspectiva, medidas de pura casuística, destinadas a resolver temas que não têm perigo de ter status constitucional, são a antítese dos elementos que atribuem à Constituição um valor distinto das outras normas jurídicas. A ilusão de que tudo deva ser alçado ao patamar constitucional conduz a um processo persistente de erosão da normatividade constitucional. E isto cria um processo que se retroalimenta, numa espiral de degradação do valor da Constituição. As pessoas duvidam da efetividade da Constituição e respondem exigindo a alteração do seu texto. Vive-se a perpétua ilusão de que os nossos problemas podem ser resolvidos no plano normativo. Delega-se a responsabilidade das mudanças que queremos para o texto da Constituição e se anestesia a inconveniente verdade de que é a sociedade que faz a Constituição, e não o contrário.
Cada vez menos as pessoas olham para a Constituição e reconhecem nela o necessário elemento de consenso, subjacente à sua própria concepção jurídica. Pelo contrário, se enxerga nele um texto a ser moldado conforma as circunstâncias particulares de cada grupo. Nessa toada, emenda após emenda, vai se tornando a Constituição um documento depreciado. Tão sem valor que os conflitos mais comezinhos precisam ser arbitrados diretamente pela Constituição. O perigo de medidas como a proposta de Emenda que serve aqui de leitmotiv é que cada vez mais percamos de mira que a Constituição é uma coisa séria e que a perda de seu valor conduz, inexoravelmente, à ruptura. Enfim, ou se leva a Constituição a sério ou se admite de uma vez que ela só é mais uma lei, cuja única peculiaridade é a necessidade de maiores lobbies para alterá-la.
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