Não é a primeira vez que, desde a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), se pretende modificar o procedimento para adoção no Brasil. Em 2009, a Lei 12.010 introduziu diversas modificações na legislação, com vistas a agilizar os processos de adoção. O resultado, pelo que se observa, não foi satisfatório, posto que, passados pouco mais de seis anos, continuamos a ver o número de crianças e adolescentes acolhidos crescer.
Muita gente que não é do meio jurídico não compreende que o processo de adoção está interligado com outros processos, dos quais depende. Assim, normalmente, para que uma adoção aconteça, de forma legal, pelo menos três processos foram ajuizados na Vara da Infância e da Juventude.
O primeiro deles é o processo de destituição do poder familiar, quando os pais são vivos e não concordam em entregar a criança ou o(a) adolescente para adoção (o que é o caso da maioria dos acolhidos). Esse processo, normalmente ajuizado pelo Ministério Público, serve para tirar o poder familiar dos pais biológicos (que foram omissos, negligentes, violentos, são usuários de drogas etc.) e assim colocar a criança e o(a) adolescente em condições de ser adotado(a) por outra família. Parece-me que a maior dificuldade está justamente nesse processo, já que é extremamente complexo e impõe ao juiz e à rede de proteção uma série de limitações, que evidentemente fazem com que o processo demore.
Além disso, a destituição ou a adoção só podem acontecer, por força de lei, quando “esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa” (art. 39, 1.º, do ECA), expressão repetida por mais de 20 vezes no Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas o que significa “esgotar os recursos”? Quantas vezes devemos incluir a mãe dependente química em tratamentos? Por quantas vezes, quantos meses ou anos precisamos tentar ou esperar? Alguém sempre poderá dizer que ainda não foram esgotados todos os meios de manter a criança na família biológica ou extensa (tios, avós etc.).
Superadas essas dificuldades, produzidas provas, o juiz decide pela destituição do poder familiar ou não, no prazo de 120 dias (art. 163, ECA). A partir daí, cabe o recurso de apelação, ou seja, o processo segue para o Tribunal de Justiça do Estado, que poderá manter ou rever a decisão. Eventualmente, ainda cabe recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Somente depois de esgotados os recursos, que poderão demorar anos, a criança ou o(a) adolescente estarão em condições de serem adotados.
Propagou-se, na mídia, a ideia de que o projeto viria para acelerar os processos de adoção. Não encontrei um único dispositivo nesse sentido. Pelo contrário, impõem-se mais garantias aos familiares biológicos, mais prazos, e o resultado será nulo, em termos de agilização dos processos de adoção
O que muda nessa situação com o projeto apresentado? Absolutamente nada! Nenhum dispositivo! Pior, repete mais uma vez a advertência de que devem esgotar os recursos de manutenção da criança na família natural ou extensa (Art. 92, II, do Anteprojeto), como uma espécie de espada de Dâmocles sobre a cabeça de quem “ousa” destituir os genitores (negligentes, omissos, violentos etc.) do poder familiar.
Outro processo será o da habilitação dos pretendentes à adoção. Aqueles que desejam adotar precisam se cadastrar, apresentar documentos, ser avaliados por equipe técnica e preparados para a adoção. Esse procedimento é necessário e acontece, de modo similar, em outros países.
Uma vez habilitados, poderão adotar crianças ou adolescentes destituídos do poder familiar ou aquelas que os pais entregaram voluntariamente (o que é muito raro).
O processo de adoção, portanto, é o terceiro processo e, na maioria das vezes, o mais simples. A criança é entregue aos adotantes, realiza-se o estágio de convivência (que pode ser de 30 dias). Se tudo correu bem, colhe-se a manifestação do Ministério Público, e o juiz defere a adoção. Em seguida promove-se o novo registro da criança ou do(a) adolescente, com o nome dos pais adotivos.
Além desses processos, poderemos ter outros, como, por exemplo, um processo de acolhimento da criança ou do(a) adolescente, que normalmente precede ao processo de destituição do poder familiar.
Observem que a nova lei proposta nada altera nesses processos.
A Lei 12.010 de 2009 havia introduzido um dispositivo sempre criticado, que prevê, nos casos em que a mãe comparece em Juízo para voluntariamente entregar a criança para adoção, a possibilidade de arrependimento até a data da sentença de adoção (Art. 166, § 5.º). Como o estágio de convivência é obrigatório, mesmo no caso de crianças recém-nascidas, havia o risco de a mãe se arrepender quando a criança já estava com a família adotiva, causando enorme insegurança jurídica. Imagine tirar a criança dos pais adotivos, depois de alguns dias ou meses, porque a mãe se arrependeu?
O principal problema da adoção no Brasil não está na Lei. O problema da adoção no Brasil está principalmente na absoluta falta de condições e de estrutura das Varas de Infância e Juventude, em especial de equipes técnicas
O projeto prevê a possibilidade de que a mãe se arrependa, inclusive indicando algum parente para guardá-la, no prazo de 60 dias. Significa dizer que mesmo aquela criança cuja mãe já vem sendo acompanhada pela rede de proteção, que desde o início da gravidez já manifesta o desejo de entregar a criança para adoção, terá que ser acolhida e permanecer 60 dias (talvez os mais importantes de sua vida), numa instituição de acolhimento, apenas para esperar o prazo de “arrependimento”. Além do mais, ainda possibilita que, neste prazo, a genitora indique alguém da família para guardar a criança ou adotá-la.
Como diz o ditado, “nada está tão ruim que não possa ser piorado”. A fixação de um prazo para arrependimento é louvável, desde que seja breve. Sugiro como solução razoável permitir ao juiz homologar a manifestação prestada livremente pela mãe e aguardar o prazo de recurso (10 dias), que seria o prazo para eventual arrependimento.
A busca de parentes (Art. 1.º, § 1B) também é um retrocesso. Em muitos casos a mãe deseja guardar o sigilo, inclusive em relação a seus parentes, o que deve ser respeitado. Buscar parentes que sequer acompanharam a gravidez, não deram apoio à genitora, não estavam presentes no momento do nascimento da criança é um absurdo. É para esses parentes omissos que vamos entregar a criança?
Propagou-se, na mídia, a ideia de que o projeto viria para acelerar os processos de adoção. Não encontrei um único dispositivo nesse sentido. Pelo contrário, impõem-se mais garantias aos familiares biológicos, mais prazos, e o resultado será nulo, em termos de agilização dos processos de adoção.
Grande parte do anteprojeto (art. 19-A) trata do apadrinhamento afetivo, que não guarda relação direta com a adoção. É uma alternativa para que crianças e adolescentes que vivem nas instituições tenham alguém que possam visitar, manter relações familiares, em finais de semana, feriados e férias, mas que não se confunde nem substitui a adoção.
Outra grande parte do anteprojeto trata da adoção internacional, sem grandes novidades, posto que apenas regulamenta práticas já adotadas na maioria dos estados.
A busca de parentes (Art. 1.º, § 1B) também é um retrocesso. Em muitos casos a mãe deseja guardar o sigilo, inclusive em relação a seus parentes, o que deve ser respeitado
Como se vê, o objetivo do projeto não será alcançado. Há muito tempo venho dizendo que o principal problema da adoção no Brasil não está na Lei. O problema da adoção no Brasil está principalmente na absoluta falta de condições e de estrutura das Varas de Infância e Juventude, em especial de equipes técnicas.
A Equipe técnica é fundamental numa Vara de Infância e Juventude. A celeridade depende, em grande parte, da equipe técnica (normalmente composta por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos). Desde o acolhimento da criança, sua possível reintegração ou não à família de origem, a avaliação e a preparação dos candidatos à adoção, a preparação das crianças para adoção, o acompanhamento do estágio de convivência etc. exigem efetiva participação de equipe técnica experiente.
O provimento 36 da Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ), de 2014, que determina a implantação de equipes interdisciplinares, pelos tribunais de justiça, produziram efeitos pífios. Ainda há estados que têm equipes técnicas apenas nas capitais, ainda assim de forma precária. A maioria das Varas de Infância e Juventude do país sequer conta com essas equipes interdisciplinares que, como já anotado, são essenciais, sem as quais não se avança na celeridade dos processos que envolvem crianças acolhidas. Nenhum juiz vai ser irresponsável de destituir pais do poder familiar, de habilitar interessados na adoção, de colocar uma criança em adoção sem antes promover uma avaliação técnica. Não basta fazer adoção. Ela precisa de um mínimo de segurança.
Mais uma vez, o anteprojeto peca ao autorizar a terceirização desses serviços (art. 16, § 6.º), com nomeação de técnicos indicados pelo juiz. Destituição do poder familiar e adoção são processos extremamente complexos, que decidem o futuro de uma criança, de uma família, que exigem celeridade. É por isso que se exige o envolvimento de profissionais experientes, capacitados, o que normalmente não acontece quando esses serviços são terceirizados.
Só mudar a lei nada vai resolver! É preciso mudar a prática!
Julgamento do Marco Civil da Internet e PL da IA colocam inovação em tecnologia em risco
Militares acusados de suposto golpe se movem no STF para tentar escapar de Moraes e da PF
Uma inelegibilidade bastante desproporcional
Quando a nostalgia vence a lacração: a volta do “pele-vermelha” à liga do futebol americano