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Há tempos as Agências Reguladoras brasileiras vêm sendo esvaziadas. A concepção original de que elas seriam entes autônomos dentro da estrutura da Administração brasileira, aptos a definir regulações setoriais de modo equidistante dos interesses públicos e privados, há tempos foi deixada para trás. Institucionalmente, a criação de Agências Reguladoras serve ao propósito de criar um lócus técnico capaz de arbitrar os diferentes conflitos que costumam incidir sobre setores complexos da economia, visando a assegurar o equilíbrio do sistema como um todo – e não interesses específicos de um ou mais atores. Daí porque um dos pressupostos centrais do modelo é prestigiar as decisões do regulador evitando que elas sejam avaliadas por pautas exclusivamente políticas.

Como sabe-se, muitas vezes há a necessidade de se prestigiar decisões impopulares com vistas a favorecer o que é adequado do ponto de vista institucional. Nesta perspectiva, o controle da regulação envolve a existência de instâncias procedimentais capazes de assegurar que todos os interesses institucionais a serem prestigiados sejam levados em consideração, justamente ao não privilegiar nenhum – mas o sistema. Cuida-se ainda de assegurar participação de todos os atores institucionais relevantes para a produção de uma decisão. E é intuitivo que usualmente os interesses não sejam harmônicos, devendo ser procedidas escolhas, a serem testadas contra os fatos. Regular, portanto, é uma atividade complexa. Mais do que isso, ela não casa bem com manifestações demagógicas e voluntarismos – inerentes a decisões políticas. Muitas vezes, o prestígio integral das demandas dos usuários pode representar o colapso do sistema como um todo. Pense-se por exemplo que o interesse de pagar a menor tarifa possível pode se chocar com a necessidade de universalização de um serviço. Nesse caso, protege-se o interesse atual do usuário do sistema, às custas do usuário futuro, em nítido prejuízo aos objetivos da regulação.

Relembradas essas características, é que se recebe com surpresa o Decreto Legislativo 89 de 14/12/2016, que suspendeu a Resolução 400 da Agencia Nacional de Aviação Civil que pretendia disciplinar a cobrança de bagagens no setor aéreo. O efeito prático do referido Decreto é a suspensão pelo Senado de um ato regulatório produzido segundo os critérios técnicos aplicáveis à espécie pela ANAC. Na retaguarda desse ato, está a percepção de que haveria uma injustiça ao usuário do transporte aéreo, que deixaria de ter assegurado em seu favor a franquia de bagagem. Segundo a inteligência do ato regulatório, permitir-se-ia a venda do direito de transportar bagagem de modo autônomo. Com efeito, o objetivo desse texto não é questionar a medida da ANAC do ponto de vista do seu mérito. Em favor da medida milita a pressuposição de que a liberação tenderia a criar alternativas em prol do consumidor. Hoje é inegável que aquele que não usa a franquia (como o que viaja a trabalho usualmente) está subsidiando aquele que usa. Contra, pode-se imaginar que a baixa concorrência no setor aéreo tenderia a impedir a transferência de benefícios para os usuários, criando um benefício indevido em favor das companhias aéreas. Enfim, existe um debate técnico a ser feito. Mas o lócus apropriado para tal é a própria Agência. Com efeito, a norma produzida pela ANAC passou formalmente por todas as etapas necessárias à sua edição, militando em seu favor a pressuposição de ter sido expedida de acordo com a Lei.

Examinando o ato praticado pelo Senado percebe-se que as razões aduzidas para suspender o ato regulatório são puramente retóricas. Em momento algum se questiona o mérito da decisão produzida ou se apontam, concretamente, onde seria violada a legalidade e extrapolado o poder regulamentar. A “justificação” apresentada limita-se a dizer que a medida “carece de maiores avaliações” e que seria eliminado o “direito à franquia de bagagem despachada” – ignorando-se que a agência vinha estudando o tema há mais de ano, inclusive com realização de audiências e consultas públicas, tendo recebido mais de 1,2 mil contribuições (segundo noticiado no site da ANAC). Menciona-se ainda a falta de “compromisso público de efetiva redução das tarifas”. Enfim, tem-se um pout pourri de justificativas retóricas que em momento algum promovem um exame sério do tema. Com o devido respeito, cuida-se de um exame ligeiro sobre um tema relevante. Nítido está que o exercício da competência do Senado de suspender atos do Executivo que vão além do poder regulamentar (cf. art. 49, V da Constituição) foi exercido sem qualquer justificativa plausível. Aliás, justamente o único critério constitucional que autoriza o exercício desta competência pelo Senado (i r além do poder regulamentar) nem sequer é mencionado na Justificação do Projeto. Nesse ponto o ato do Senado configura um precedente extremamente arriscado para nosso sistema jurídico, sobretudo considerando-se que na sessão do dia 14 chegou-se a mencionar que as agências estariam subordinadas ao Senado. Qual o sentido de se atribuir então autonomia a estes entes? Parece que a tão esperada Lei Geral das Agências Reguladoras (PL 52/2013 do Senado), que tem como justificativa “preservar sua autonomia e independência”, nem sequer foi aprovada e já está fadada ao fracasso. Com efeito, o recente ato do Senado indica que o sentimento da opinião pública pode se superpor às normas setoriais, e que para agradar a opinião pública o Senado pode desprezar o conteúdo de normas regulatórias, e interferir no exercício de competência das Agências enquanto extrapola os limites constitucionais da sua própria competência. Para que então regulação se ao final as decisões são tomadas sempre na arena política?

O ponto de vista a ser questionado aqui não é o conteúdo da norma suspensa, mas o próprio precedente de o Senado sustar a eficácia do ato regulatório calçado em argumentos manifestamente panfletários.

Segundo pensamos esse pode ser o prego que falta do caixão do modelo regulatório brasileiro. Afinal, no presente caso é nítido que se suplantou a análise técnica do tema pelo populismo. Como diz a sabedoria popular, onde passa boi, passa boiada. Quem perde com isso? Segundo pensamos, e para os adeptos da regulação, a coletividade. A percepção de incerteza no ambiente de negócios sempre redunda em prejuízo ao usuário, às vezes em curto, às vezes em longo prazo. O desprezo pelas normas, especialmente quando vindo das autoridades da República, é sempre um lembrete inconveniente da fragilidade das instituições brasileiras. Se as agências reguladoras são tratadas como órgãos do Poder Executivo, e o ato do Senado isto reflete, podem exercer qualquer função, exceto regular. Infelizmente, parece que estamos dando um passo para trás.

Heloísa
Conrado Caggiano
, mestranda em Direito da Regulação pela FGV-Rio, advogada em Curitiba.
Bernardo S. Guimarães
, doutor em Direito do Estado pela FADUSP, professor da PUCPR, advogado em Curitiba
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