A recessão econômica e a instabilidade política trazem à pauta a necessidade, suposta urgente, de reformar a Previdência Social. A propaganda oficial do déficit, por um lado sustenta a mobilização política pela adesão às propostas e, por outro, dá azo à incerteza quanto à sobrevivência do sistema. É o resumo simplista de um cenário complexo, de premissas contraditórias e lógicas invertidas.
A urgência política tem causa na necessidade da venda da imagem de austeridade para o resgate da confiança do mercado. A urgência econômica, por sua vez, no alardeado desequilíbrio financeiro – como se a previdência estivesse gastando mais do que arrecadando – e atuarial – presumindo colapso no futuro.
As premissas e os fins são contraditórios: a reforma propõe readequar os requisitos para concessão de benefícios, diminuindo a despesa em longo prazo, mas também aumentar disponibilidade do caixa da previdência para atender às necessidades urgentes de realização de despesas. Quanto aos benefícios, o discurso atende à lógica da sustentabilidade. Mas quanto ao custeio, é preciso pontuar alguns poréns. Não haverá amanhãs se os hojes forem, antes deles, inviáveis.
As medidas propostas não acodem a Previdência. Utilizam-na como instrumento para acudir o próprio governo. Os dados são públicos: a previdência urbana é superavitária, e mesmo incluindo a previdência rural se o governo não desvinculasse 20% da receita previdenciária para fins diversos da despesa com benefícios. Por isso, o governo quer elevar essa fatia para 30% da receita, puxando a coberta para seu lado e descobrindo, com isso, a Previdência.
Na outra mão, os setores produtivos têm reivindicado a diminuição do custo do trabalho. Déja vu: esta demanda foi atendida para 50 setores da economia em 2011, mas o tiro saiu pela culatra. Causou um prejuízo de mais de 500 bilhões de reais em menos de cinco anos, sem representar aumento dos postos de trabalho. Pelo contrário, aumentou a má-distribuição de renda do país. Investimento que causou prejuízo 15 vezes maior do que a economia de 31 bilhões gerada pela instituição do fator previdenciário nos dez primeiros anos de sua vigência.
Está claro, portanto, que a desvinculação e a renúncia de receitas, empreendidas pelo governo sem consequências diretas de aquecimento da economia e do trabalho, contradizem o suposto zelo pelo equilíbrio financeiro contra o qual acaba investindo.
Outro fator preponderante para o desequilíbrio financeiro é a resposta que a sociedade dá diante da instabilidade. Quem pode, foge da previdência oficial. Mas a crença cega na previdência privada, como se a economia não fosse – como é também o direito – uma linguagem ‘técnica’ da política, também tem seus riscos.
A legislação evoluiu e confere segurança jurídica, vantagens tributárias e financeiras para os fundos de pensão, em benefício de ainda pequeno grupo de categorias profissionais e empresas já organizadas em solidariedade de grupo – a previdência fechada, que não têm fins lucrativos. Aqui passaram a se inserir, desde 2012, também os novos servidores públicos, ainda céticos em relação a ela. Na previdência aberta, por sua vez, quem ganha são em regra apenas os bancos e seguradoras.
Mas a sorte dos investimentos de todas elas – a construção dos amanhãs de todas as faixas de renda – depende dos delicados hojes da política econômica. Os investimentos de risco no setor produtivo dependem da higidez na gestão das grandes e ascendentes empresas de infraestrutura, e os de suposto menor risco – as letras do tesouro – dependem da capacidade do governo de honrar a dívida interna em longo prazo. E nada disso, por hora, está garantido.
É porque essas as medidas visam à disponibilidade e liquidez, hoje, ou pelo capital financeiro ou pelo próprio governo, dos bilhões que representam as pequenas poupanças forçadas de todos os trabalhadores. Vendendo-se as rendas futuras deles, garantem-se os rendimentos atuais da própria economia especulativa, que decide os caminhos da esfera produtiva. O trabalho e o capital continuam mutuamente dependentes.
Se o lastro da previdência, como acumulação de capital bastante para gerar renda independente do trabalho (salário) e do patrimônio (aluguéis e outros direitos) passar de resultado para condição sine qua non da produção econômica, e em razão disso se tornar inviável, então ou a economia capitalista ou o estado de direito, ou ambos, terão – por causa ou consequência recíprocas, mas inevitavelmente – se tornado inviáveis.
É porque toda ação política deveria convergir para o desenvolvimento e a solidez da previdência pública, e não para seu sucateamento.
Noa Piatã Bassfeld Gnata: diretor do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário – IBDP, doutorando e mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade social pela Faculdade de Direito da USP – Largo de São Francisco