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Estima-se que existem aproximadamente 100 milhões de ações em trâmite no Brasil, das quais 400 mil estão relacionadas à área da saúde, com um custo anual calculado em mais de um bilhão de reais. As ações relacionadas à judicialização da saúde dizem respeito, em termos gerais, à busca por tratamentos, exames e medicamentos não autorizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ampliação da cobertura dos planos de saúde e conflito entre profissionais e pacientes. O aumento da frequência deste tipo de litígio decorre de um cenário recente, moldado pelos seguintes fatores:

•O aumento da longevidade média da população elevou a presença de doenças crônicas, gerando a necessidade de mais intervenções clínicas;

•O fenômeno de envelhecimento estimulou a indústria, como agente de mercado, a investir no desenvolvimento de medicamentos, tratamentos e tecnologias de diagnóstico de elevado custo;

•Os avanços tecnológicos ampliaram o acesso da população à informação sobre novos tratamentos e medicamentos;

•Para adequar seus orçamentos aos objetivos financeiros, os planos de saúde procuraram limitar a cobertura a determinadas intervenções;

•As crescentes demandas ao Estado estabeleceram limitações para as ações do Sistema de Saúde Pública e para a oferta de recursos à população.

Suportados pelo princípio constitucional de que a saúde é um direito fundamental de todos e um dever do Estado (CF, artigo 196), as discussões no âmbito jurídico se concentraram na relação entre Estado e cidadão e no objeto do direito ao acesso às garantias determinadas pelo texto constitucional. Entretanto, sobre o mesmo texto, outros agentes, com interesses próprios, passaram a atuar de modo ativo nas políticas de saúde do país, tornando a questão mais complexa do que a referida relação.

•Pacientes – na condição de objetos de cuidados do sistema, buscam seus interesses pessoais em relação ao acesso a tratamentos e medicamentos;

•Clientes – caracterizados como os sujeitos de direito, requerem, por via judicial, a letra da lei, atentando para interpretações favoráveis aos seus interesses sobre os contratos das operadoras de planos de saúde;

•Operadoras – procuram maximizar o lucro aos seus sócios ou cooperados por meio da limitação na prestação de serviços de saúde;

•Indústria – investe no desenvolvimento de produtos e na ampliação da demanda por meio da influência sobre profissionais e pacientes;

•Profissionais – agem sob a liberdade de convicção para a prescrição de intervenções e medicamentos que julguem convenientes;

•Estado (SUS) – procura demandar serviços e produtos dentro de limites orçamentários;

•Poder Judiciário – busca equalizar o desequilíbrio social entre os agentes de mercado, porém, nem sempre com o conhecimento técnico necessário (vide caso da fosfoetanolamina).

Embora os agentes envolvidos tenham interesses próprios, existem elos entre estes que estendem as consequências das suas ações individuais para todo o sistema de saúde.

Quando a saúde representa um direito constitucional do cidadão, numa sociedade em envelhecimento, as pessoas recorrem com maior frequência a recursos, caracterizando um amplo mercado de consumo. A indústria, sensível à demanda, investe em pesquisa e desenvolvimento de novos exames, tratamentos e tecnologias, tornando mais onerosas as intervenções de saúde.

O cidadão, representando a parte vulnerável do sistema, por não deter a plena informação técnica sobre os procedimentos de saúde (assimetria da informação) e por ser o agente de menor poder econômico, sensível à publicidade corporativa (da indústria e dos profissionais), encontra no Poder Judiciário um caminho acessível para buscar o equilíbrio das suas necessidades e desejos. A requisição judicial, analisada sob base compensadora e constitucionalista, toma por objetivo o beneficio do indivíduo desfavorecido, porém gerando um elevado ônus social, haja vista determinará a elevação dos custos do sistema de saúde, aumentando a desigualdade na concessão de medicamentos e acesso aos serviços.

Quando o cidadão obtém judicialmente uma vantagem não prevista no contrato do seu plano de saúde, por exemplo, ao ser beneficiado fortalece a mensagem para a sociedade de que esta é uma via conveniente. Estima-se que 90% dos casos judicializados requerem intervenções fora da cobertura contratual.

Em 1988, o constituinte, ao discutir os termos da Constituição Cidadã, não anteviu as tendências epidemiológicas decorrentes do envelhecimento da população. A Lei contribuiu para o desenvolvimento de uma complexa relação de mercado pautada no dever do Estado de assegurar de modo ilimitado os direitos à população. Neste ambiente, e regido pela lógica do capitalismo, os atores naturalmente tentam maximizar seus benefícios por meio da socialização dos custos individuais dos seus tratamentos. Definir, por meio do diálogo entre os representantes dos vários setores interessados, um sistema justo, na medida da sua viabilidade é essencial, compreendendo que a solução pondera pela redução do ganho do indivíduo para benefício da sociedade.

Giorgia Bach Malacarne, advogada especialista em Processo Civil, atuante na área de direito da saúde
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