Por nove votos a zero, mais uma barreira contra a liberdade de expressão foi posta abaixo. O Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão histórica na tarde de 10 de junho, afastou a exigência de que biografados autorizem previamente a publicação de biografias. Em um país com longo histórico de censura, é importante analisar a maneira pela qual o STF chegou a essa decisão que afasta o fantasma que rondava as biografias.
A ação direta de inconstitucionalidade nº 4815 havia sido proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros em julho de 2012 com o intuito de declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, mediante interpretação conforme à Constituição, fosse afastada do ordenamento jurídico nacional a necessidade do consentimento do biografado ou de qualquer pessoa retratada para a publicação de uma biografia.
O conflito era entre dois grupos de direitos previstos na Constituição da República: de um lado, a liberdade de expressão e de informação, contida nos artigos 5º, IV e 220; do outro, direitos da personalidade, como intimidade, privacidade e imagem, descritos no artigo 5º, X do texto de 1988.
Para possibilitar uma decisão, o método da ponderação ou balanceamento, difundido por Robert Alexy, foi invocado pela julgadora. Essa técnica permite que cada aspecto seja levado em consideração na medida de sua importância para que a solução encontrada respeite todos os direitos, ainda que venha a conceder a prevalência a um deles.
O ministro Luis Roberto Barroso, com notável produção acadêmica sobre o assunto, reforçou em seu voto que há três etapas principais para sua aplicação. A primeira consiste na identificação das normas que se aplicam ao caso concreto e os seus pontos de conflito. A segunda etapa compreende o exame minucioso dos fatos e da disposição entre as circunstâncias fáticas e os elementos normativos que regulam o caso em comento. A terceira corresponde ao momento de decisão, no qual todos os elementos concretos e jurídicos são analisados e sopesados, de forma a se decidir por uma solução apropriada.
A partir desse arcabouço, a liberdade de expressão foi entendida como o elemento de grande relevância no momento da ponderação, que só pode ser reduzida em situações excepcionais, em respeito à sua preferred position, ou seja, sua posição de preferência frente a outros direitos individuais.
O entendimento do STF sobre essa liberdade já havia sido explorado em abril de 2009, quando foi julgada a Lei nº 5.250/67, a Lei de Imprensa. Tal deliberação trouxe à tona concepções sobre a liberdade de expressão e de informação que foram importantes para o julgamento do conflito atual.
Os posicionamentos jurisprudenciais sobre os direitos da personalidade das pessoas públicas e notórias, por sua vez, exprimem uma visão de que essas pessoas possuem esferas mais limitadas desses direitos, tendo em vista que se aproveitam da exposição de suas vida privada e imagem.
Com base nessas posições, os ministros da mais alta corte concluíram que a liberdade de publicar obras biográficas, sejam escritas, sejam em meios audiovisuais, deve prevalecer sobre os direitos à intimidade do biografado, em respeito ao seu valor social. Limitá-la não representa apenas uma desvantagem a um indivíduo isolado, mas uma perda para a sociedade como um todo. O desenvolvimento dos grupos sociais depende da circulação de ideias e informações no maior número possível, o que implica na excepcionalidade das medidas que venham a mitigar tal cenário.
O julgamento representa uma vitória também da compreensão da dimensão horizontal dos direitos fundamentais. Não se trata apenas de prerrogativas que o Estado deve respeitar, mas também os particulares.
Restam abertas ainda as discussões de como os casos futuros serão decididos pela Justiça. Um trecho do voto da relatora, que determinava que a violação da intimidade “haverá de se reparar mediante indenização” foi excluído, para evitar a interpretação de que o pagamento de valores é a única saída possível nessas situações. O recolhimento de livros, medida rechaçada pelo ministro Barroso, não foi totalmente descartado pelos outros integrantes da corte.
Há que se destacar também o atual trâmite no Congresso Nacional do Projeto de Lei n.º 393/2011, que pretende regulamentar por meio legislativo a publicação de biografias sem a necessidade de prévia autorização dos biografados, garantindo assim liberdade para as biografias com contornos mais amplos. O projeto, que acrescenta parágrafos ao artigo 20 do Código Civil, já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado.
Depois de vários projetos que não chegaram a ser escritos ou foram retirados das livrarias à força (dentre os muitos exemplos que poderiam ser citados, as obras que tratavam de Roberto Carlos, Garrincha e Noel Rosa), a decisão do STF aponta que o Brasil caminha para uma maturidade que o permita construir sua história através das biografias. Como bem lembrou a ministra relatora Carmem Lucia, “quem, por direito, não é senhor do seu dizer não se pode dizer senhor de qualquer direito”.
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