A decisão do Supremo Tribunal Federal no HC no. 126.292, antes mesmo de sua publicação, gerou manifestações calorosas tanto em sua defesa quanto em seu total rechaço. A partir da leitura do ‘esboço’ de voto do min. Teori Zavascki, e da transcrição do voto do min. Roberto Barroso, é possível tecer enfrentar algumas das objeções que lhe são levantadas e fazer algumas observações.
Em primeiro lugar, o min. Zavascki faz breve menção e o min. Barroso expressamente adota como fundamento o fato de que o desenho atual do sistema, por meio das leis aplicáveis e da jurisprudência agora modificada, permite que os processos se arrastem por anos – em especial por quem pode arcar com os custos de advogados - até a prescrição. Mas talvez esse não seja o melhor argumento para defender a posição dos ministros. Utilizando-se de uma fundamentação francamente utilitarista é difícil passar no seguinte teste: em algumas situações poder-se-á alcançar a felicidade geral garantindo-se a imposição da pena a alguns ao invés de sucumbir à prescrição - em detrimento do direito fundamental à liberdade de um indivíduo. Esta objeção é uma questão de justiça: poderíamos sacrificar o direito de liberdade de uma pessoa para garantir que várias outras cumprissem sua pena sem serem beneficiados pela prescrição? Com este fundamento, o Supremo nos leva a crer que está tentando resolver um problema estrutural, reconhecidamente existente, mas que deveria ser solucionado pela legislação.
Outra objeção legítima, a nosso ver, é o modo de uso do direito estrangeiro. Primeiro, há menção de que não há outro lugar no mundo que exija referendo da corte suprema para exequibilidade de uma decisão. Para além disso, a decisão menciona estudo que indica a posição de diferentes países em relação à possibilidade de execução da pena quando ainda pendente recurso para a corte suprema do país. Vemos com muita desconfiança esse cross-constitucionalismo, com o lançamento de posições de outros países e de cortes estrangeiras sem o acompanhamento de detalhada explicação de como esses países se aproximam do nosso. Era 2005 quando o recém falecido juiz Scalia, da Suprema Corte americana, no julgamento do caso Roper v. Simmons alertava para os cuidados necessários ao se fazer tais importações. Ora, as diferenças culturais, sociais, políticas e essencialmente de cultura jurídica, podem ser relevantíssimas para se utilizar ou afastar o que outros países adotam. Não deveria bastar saber como resolvem o mesmo problema os Estados Unidos, a Dinamarca ou Portugal. É preciso estabelecer que estamos realmente a falar do mesmo problema e identificar se há fundamentos para importar soluções de outros Estados.
A decisão dá melhor resposta a outra objeção que lhe é feita: a decisão contraria o texto constitucional. A Constituição diz que ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença. Pois bem, qual o significado que se tem dado à norma que decorre deste texto? E mais, há uma norma anterior que o define? Parece não haver disputa que esta regra é a expressão do princípio de presunção de inocência o que significa dizer, nos termos de tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte, que toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prove sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa. O que o Supremo Tribunal Federal admitiu, agora, é que havendo decisão contrária à pretensão do réu de que seja reconhecida sua inocência, a presunção deixa de operar em seu favor.
Por certo que muitos dirão que não é possível compreender nada diferente da letra da Constituição, que ela é clara ao estabelecer que o réu não pode ser preso antes da sentença transitar em julgado. Mas é preciso ler novamente. Será que a Constituição realmente diz isso? Nenhuma outra interpretação é possível? Por sua letra, afirma-se tão somente que só o trânsito em julgado pode permitir que se diga que alguém é culpado. Não se pode dizer que da letra da Constituição decorre que sem o trânsito em julgado o indivíduo não pode ser preso. E nosso direito admite casos especiais em que é possível a prisão, sem a decisão transitada em julgado. A Constituição exige, sem dúvidas, o trânsito em julgado para que o indivíduo seja considerado culpado. O ministro levou em consideração o fato de que o juízo de culpabilidade não pode mais ser atacado nestes recursos. O indivíduo já foi declarado culpado, após a análise dos fatos em processo em que se presumiu sua inocência, com todas as consequências que o princípio traz para a produção de provas. E mesmo que se diga que pode haver erro ou injustiça na decisão, o Ministro lembra que não há abandono pelo Judiciário, eis que ainda há instrumentos processuais que podem, inclusive, levar à suspensão da ordem de prisão.
Parece realmente que o mais relevante e bem elaborado é o argumento que parte da ideia de que se o indivíduo foi condenado em primeira instância, é porque há um juízo de culpa, que ainda está sujeito ao grau recursal. Com o julgamento do recurso, ‘fica definitivamente exaurido o exame sobre os fatos e provas da causa’, ou seja, só haverá possibilidade de se levar o processo adiante por uma questão de direito. A prestação jurisdicional acerca da culpabilidade do indivíduo está entregue, esta não será modificada, mormente diante da reforma constitucional exigindo a demonstração de repercussão geral. Seguindo este raciocínio, conclui que se é culpado, não há porque obstar o cumprimento da pena pela interposição de recurso que, além do mais, não tem efeito de suspender o andamento do processo.
O texto da Constituição parece não ter sido rasgado, como querem alguns. Houve interpretação da Constituição, que por certo levou em consideração outros artigos ali constantes, como a dignidade do ser humano, a soberania popular e a construção de uma sociedade justa.
Pendendo ainda da leitura do voto que ainda não foi publicado, a análise nos leva a afirmar que não se sustentam as objeções já lançadas à decisão.
Deixe sua opinião