Apelando às metafísicas liberais as pessoas costumam pensar nas leis como expressão do bem comum. História da carochinha. As leis são o produto de grupos de interesse que têm capacidade de atuar sobre o Parlamento na tutela de seus interesses. Nessa dinâmica, o poder político é uma mercadoria valiosa. O Estado vende uma mercadoria que ninguém mais pode vender: a proteção contra a concorrência. Aí o incentivo para que minorias organizadas consigam benefícios em seu favor. Claro, isso tudo vem bem embalado em discursos de proteção da empresa nacional, do desenvolvimento local, das famílias dos trabalhadores, etc. Tirante o glacê retórico o efeito é um só: o consumidor paga mais caro por algo que seria mais barato num regime de efetiva concorrência. E esse benefício é embolsado por aqueles que estão absolutamente convencidos que o consumidor deve ser protegido de suas escolhas. Esse modo de pensar tem um passado glorioso e um futuro brilhante no Brasil.
O PL 5.587/2016 aprovado na Câmara dos Deputados na terça-feira (4) acerca de aplicativos de transporte, que ainda vai ao Senado, é a prova cabal disto. Nominalmente, ele visa a esclarecer aspectos da Lei Federal 12.587/12, que cria a “Política Nacional de Mobilidade Urbana”. Os aplicativos de transporte chegaram e imediatamente caíram no gosto dos consumidores. Preço, qualidade e mesmo novidade são apelos fortes. Claro que isso se fez à custa do mercado antes cativo dos táxis. Criou-se uma opção para o consumidor onde antes não havia. Coisas típicas de economias dinâmicas que se sujeitam a constantes inovações, que acreditam que a força inovadora das ideias melhora a vida das pessoas.
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Como concorrer e ser eficiente dá trabalho e como o sistema público cria uma proximidade entre burocracia e um setor econômico, imediatamente a solução foi buscar a proteção pela via da Lei. Primeiramente em nível local, depois em nível federal. Daí a tentativa de “regulamentar” esses serviços, que funcionam muito bem sem qualquer regulamentação. Por regulamentar leia-se proibir, ou na pior das hipóteses criar dificuldades.
Depois da atuação dos grupos de pressão, a Câmara optou por uma solução à la Pôncio Pilatos, lavando as mãos (mas ainda deixando umas sujeirinhas debaixo da unha). Afastou-se pela via de substitutivo a intenção originária do PL de proibir tais modalidades de transporte (sendo evidente o custo político disso) e remeteu-se o poder de proibir tais aplicativos para os municípios. Essa solução é duplamente boa para suas Excelências, eles não têm que arcar com os custos da proibição, assim como se sabe que a atuação dos grupos de pressão ligados aos taxistas é mais forte no âmbito local.
Por outro lado, algumas diretrizes foram ainda contempladas para indicar qual a regulação deve ser produzida. E elas vão ao encontro da restrição. Nesse sentido elementos essências à formação do preço pretendem ser limitados. A lei sugere que a regulamentação local dê cabo de promover preços máximos, número de veículos, menção a preços abaixo do custo e outros. Em suma: tudo para proteger o sistema já instalado, que organizadamente atua para promover restrições à concorrência. Isso tudo sem a menor cerimônia. A leitura da justificativa original do Dep. Carlos Zarattini (PT/SP) para o PL nem sequer o disfarça.
Ora, se a União tem competência para legislar sobre o tema (o que se confessa ao produzir uma Lei Federal), parece que ela não pode se demitir dessa atribuição e a relegar para os municípios.
Em que pese todo o esforço para restringir a atividade, esse é daqueles temas que a última palavra será do Judiciário. E bons motivos levam a duvidar da constitucionalidade do projeto que está em trâmite.
O mais evidente deles está no fato de ser de duvidosa constitucionalidade que uma atividade seja considerada lícita em um município e ilícita noutro. Ora, se a União tem competência para legislar sobre o tema (o que se confessa ao produzir uma Lei Federal), parece que ela não pode se demitir dessa atribuição e a relegar para os municípios. Com efeito, a proibição de atividades econômicas só se justifica se houver riscos a ela associados que superam os benefícios na sua exploração. E isso parece ser algo relativamente uniforme em termos federativos. Com efeito, está-se diante de um problema de competência.
Soma-se a isso o debate a ser feito acerca da proteção à livre iniciativa versus restrições legais, especialmente em âmbito local. O STF tem jurisprudência sumulada (Súmula Vinculante 49) que inviabiliza a criação de restrições à concorrência pela estipulação de distâncias mínimas entre farmácias. Com efeito, nos precedentes que levaram à edição da súmula, registrou-se que “A limitação geográfica imposta à instalação de drogarias somente conduz à assertiva de concentração capitalista, assegurando, no perímetro, o lucro da farmácia já estabelecida. Dificulta o acesso do consumidor às melhores condições de preço, e resguarda o empresário alojado no local pelo cerceamento do exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio da liberdade de iniciativa econômica privada garantida pela Constituição Federal quando estatui que ‘a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbirtário dos lucros’. (art. 173, § 4º).” (RE 193749, Relator Maurício Corrêa, DJ de 4.5.2001). Ou seja, o STF veda restrições à exploração privada que tenham por objetivo apenas proteger agentes econômicos já estabelecidos em determinados mercados. Noves fora, a mesma razão de decidir se aplica ao caso presente.
Enfim, há muita água pra passar debaixo da ponte. E é sempre bom lembrar da força normativa da realidade. Os aplicativos existem e são usados por pessoas que parecem estar absolutamente satisfeitas com eles. A chance de a lei fazer o gênio voltar para dentro da garrafa é escassa. Melhor seria aos taxistas questionar o próprio regime em que vivem, liberando-se das amarras de um regime público, do que tentar parar a roda da história.
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