Em poucos momentos da história política de um país observaram-se mudanças e revelações tão bruscas e relevantes como as que ocorreram nos últimos meses no Brasil. Da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, à Polícia e à Justiça Federal em Curitiba, tem-se a sensação que mudanças profundas estão prestes a ocorrer. Se havia alguma dúvida em relação à indignação que se alastra em relação à corrupção, no último domingo (13) uma resposta bastante eloquente foi oferecida sobre o tema. Basta. Necessita-se mudanças. Para ontem.
Todavia, a sociedade brasileira parece estar perdida. A oposição concentra-se em apontar os erros e os pretensos crimes do governo, mas deixa de apresentar uma clara agenda propositiva. O governo parece uma sucursal do corpo de bombeiros, pois mais apaga incêndios do que, efetivamente, governa. Questiona-se quem está mais perdido. Neste momento de dificuldades extremas, ao invés de imperar a calma e a solidez de algumas instituições, têm surgido propostas milagrosas para resolver os dilemas que enfrentamos.
Na próxima quarta-feira o Supremo Tribunal Federal julgará o Mandado de Segurança nº 22972, ação que foi ajuizada em 1997 pelo então deputado Jaques Wagner e pretendia impedir que fosse deliberada no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 20-A/1995, que prevê a adoção do sistema de governo parlamentarista no Brasil. Após passar por quatro relatores, há mais de 18 anos tramitando no Supremo, parece que a discussão pode ter seu capítulo judicial encerrado, justamente em um momento bastante delicado da política nacional.
Salvo se houver a crença em milagres instantâneos que possam rapidamente solucionar a crise política, a questão merece, no mínimo, uma reflexão cautelosa, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista jurídico.
O Mandado de Segurança foi proposto para impedir que fosse discutida e deliberada a PEC que previa a alteração do sistema de governo, pois, conforme sustenta a ação, já houve manifestação dos cidadãos (os titulares do poder constituinte) no plebiscito em 1993, seguindo o art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Apesar de claro, o argumento confronta alguns problemas bastante complexos.
Em primeiro lugar, desde 1993 o Supremo Tribunal Federal tem feito uma leitura bastante ampla das chamadas cláusulas pétreas. Estas cláusulas representam limites ao poder de reforma da Constituição, isto é, os assuntos previsto no parágrafo 4º do art. 60 da Constituição não podem ser suprimidos da Constituição. Contudo, segundo o STF, podem ser alterados desde que não se viole o seu “conteúdo essencial”. Esse entendimento ampliado sobre cláusulas pétreas tem sido criticado por vários constitucionalistas comprometidos com a democracia, já que poderiam redundar em um constrição à vontade da maioria, gerando um limite ao autogoverno do povo brasileiro.
Não obstante, e, na linha do entendimento do STF, vários autores têm defendido, desde o plebiscito de 1993, que a república e o presidencialismo seriam cláusulas pétreas implícitas, pois não estariam prescritas no §4º do art. 60. Isso se dá porque, como se sabe, ambos (a república e o presidencialismo) foram os vencedores do plebiscito em 1993. Aliás, o presidencialismo foi a opção do eleitorado brasileiro em 1963 e em 1993.
Em segundo lugar, existem dúvidas acerca dos motivos pelos quais o presidente do STF decidiu recolocar este caso em pauta agora, logo após a constituição de uma comissão pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, para discutir a possibilidade de adoção de um sistema semipresidencialista, de inspiração francesa e portuguesa.
Neste contexto, toda cautela é pouca e toda reflexão sobre estas regras constitucionais deve ser feita com prudência. Afinal, qual é a pressa em se julgar um caso cuja tramitação já passa de 18 anos? Ora, a mudança do sistema de governo impacta diretamente na vida de todos os brasileiros e não se trata da mera mudança de algumas regras constitucionais, pois isso demandaria uma reflexão mais profunda sobre toda a estrutura do Poder Executivo no âmbito dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, não só da União. Ainda, há outras questões fundamentais que não devem ser analisadas pelo STF.
A primeira delas é saber se o sistema de governo é uma cláusula pétrea. Entende-se que não, sob pena de bloquear a legítima deliberação democrática. Todavia, isto não significa dizer que não haja restrições a eventual reforma nesse sentido, nem tampouco que a Constituição se resume a sua literalidade. Por exemplo, não bastaria, simplesmente, outro plebiscito para aprovar a mudança, como defendem alguns apressados.
Conforme prescreve o parágrafo 2º do art. 81 da Constituição, havendo o impedimento da presidente da República ou a cassação da chapa no TSE, deverá o novo presidente completar o mandato do antecessor. Portanto, o STF deve pronunciar-se de forma clara e exigir que o Congresso Nacional cumpra a regra constitucional. Além disso, qualquer mudança do sistema de governo necessariamente deve ocorrer para o mandato presidencial que vai se iniciar em 2018. Isto se dá por respeito ao Estado Democrático de Direito, à separação dos poderes e ao direito fundamental à segurança jurídica, ambos, cláusulas pétreas e que se tratam de instituições fundamentais para garantir a estabilidade política e econômica do país. Ignorá-los sem um amplo debate que leve em consideração os argumentos jurídicos e políticos, seria um grande retrocesso na construção de um país mais justo e que vive sobre o império do direito.
Na condição de guardião da Constituição, deve o Supremo Tribunal Federal exigir razões para as mudanças propostas. Seguindo a lição de Elster e Rawls, deve ser promovido um mecanismo de atraso da deliberação para que a Corte seja verdadeiro tribunal da razão e para que esta impere no processo político. Isso só pode ser feito exigindo razões claras e públicas dos atores (muitos deles envolvidos na Lava Jato e grandes interessados nas eventuais mudanças do sistema de governo).
Portanto, nesta crise, não há espaços para inocentes. Entretanto, deve o Tribunal chamar o Congresso e nação para uma reflexão: afinal, sob quais argumentos se quer promover essa mudança? E por que agora? Por que a pressa? Será o semipresidencialismo (ou o parlamentarismo) o milagre que nos tirará dessa crise? Serão os congressistas investigados os santos operadores desse milagre? Talvez, numa república, seja melhor que o guardião da Constituição devolva o debate e a reflexão ao povo, porquanto, como ensina a sabedoria popular, devagar com andor, o santo é de barro.
José Arthur Castillo de Macedo, é advogado e professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito no IFPR-Campus Palmas e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, no qual integra o Núcleo Constitucionalismo e Democracia.
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