O deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) voltou à mira da Justiça. O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF-RJ) ajuizou, na segunda-feira (10), uma ação civil pública contra o deputado por danos morais coletivos a comunidades quilombolas e à população negra. O valor da condenação pode chegar a R$ 300 mil. O MPF também estuda pedir a abertura de inquérito para apurar suposto crime de racismo do parlamentar cometido em sua palestra no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, na segunda-feira (03).
No evento, enquanto apontava para um mapa do Brasil que mostrava as reservas indígenas do país e criticava a política de demarcação de terras, Bolsonaro começou a falar dos quilombos. “Isso aqui é só reserva indígena. Tá faltando quilombolas, que é outra brincadeira. Eu fui num quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem pra procriador servem mais”, disse. A afirmação de Bolsonaro levantou uma onda de protestos nas redes sociais e deu ensejo à ação civil pública do MP-RJ e a duas representações perante o Ministério Público Federal (MPF), uma de parlamentares do PT e do PCdoB e outra da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
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Crime de Racismo
Olympio de Sá Sotto Maior Neto, Procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná (MP-PR) e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, considera que houve crime de racismo na manifestação de Bolsonaro. “É inadmissível que um representante parlamentar pratique um crime de maneira a menosprezar e ofender todo um segmento já vítima de perseguições e impossibilidades de exercício de direitos fundamentais, como no caso dos quilombolas”, afirma. Como a ofensa de Bolsonaro, motivada pela questão étnica e racial, não atinge uma pessoa específica, mas toda uma coletividade, não se trata de injúria qualificada, mas de crime de racismo, previsto pelo artigo 20 da Lei 7716/1989, a Lei de Racismo. “Quando a ofensa advém de um agente político, integrante do Congresso Nacional, é evidente que o ele diz serve de estímulo para outras pessoas reproduzirem essa conduta”, completa.
Para o Procurador de Justiça, a imunidade parlamentar, prevista no artigo 53 da Constituição, não protege Bolsonaro nesse caso. “A imunidade parlamentar tem origem em uma proteção que a legislação dá a fim de que o parlamentar possa fazer a defesa das suas propostas legislativas, mas não para estabelecer um salvo-conduto para a prática de crimes”, afirma Sotto Maior Neto. “A manifestação dele não teve vínculo algum com a atividade parlamentar”, completa.
O advogado Daniel Falcão, professor da USP e do Instituto Brasiliense de Direito Público, concorda com o Procurador paranaense. “A imunidade protege o parlamentar por suas opiniões políticas. Ele pode criticar o fato de haver quilombos, mas dizer que um quilombola deve ser pesado em arrobas ultrapassa o limite”, afirma. O advogado destaca ainda que não há uma decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a extensão da imunidade parlamentar. O fato de a primeira turma do STF ter aceitado uma denúncia contra Bolsonaro por incitação ao crime de estupro, em junho de 2016, abriu a possibilidade de discussão, que deverá ocorrer durante o julgamento. “O STF era muito conservador nessa matéria, mas deu um indicativo de que pode mudar seu posicionamento”, diz Falcão.
O advogado Taiguara Fernandes de Sousa, entretanto, não vê crime na conduta de Jair Bolsonaro. Sousa lembra que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem o entendimento de que, para haver a configuração do crime previsto no artigo 20 da Lei 7716/1989, deve haver uma intenção específica de induzir a discriminação em virtude de raça ou etnia. “A cor da pele não é mencionada sequer como direção da argumentação. Nem há crítica específica a etnia. A crítica se referiu, unicamente, aos quilombolas, no contexto do que o deputado falava sobre a demarcação de terras indígenas e quilombolas”, afirma Sousa. O advogado lembra ainda que o STJ julgou um caso muito parecido, em que absolveu um réu acusado de racismo por ter se manifestado contra os indígenas em um programa de televisão, no contexto de um conflito em demarcação de terras. O tribunal entendeu que, na ocasião, não havia intenção de discriminar a totalidade dos indígenas.
Liberdade de Expressão
Para além da imunidade parlamentar, o caso levanta questões mais amplas sobre liberdade de expressão. Leonardo Rosa, professor da Universidade Federal de Lavras (UFLA) e doutorando em Direito pela USP, fez seu mestrado sobre liberdade de expressão. Rosa afirma que a proteção constitucional da liberdade de expressão é um instrumento de bloqueio da autoridade do Estado sobre a vida dos cidadãos. Assim, nem toda manifestação racista pode ser punida pela autoridade do Estado. “É claro que é moralmente problemático, e até execrável, falar algo como o que ele [Bolsonaro] falou. Mas a pergunta é se o Estado tem a autoridade para impor aos indivíduos que eles não falem coisas erradas e preconceituosas”, afirma.
Para o professor, a proteção constitucional da liberdade de expressão exige que se faça a diferença entre dizer algo racista e praticar racismo. “As pessoas tratam o racismo que é proibido pela Constituição e vedado pela Lei de Racismo como incluindo manifestações que têm conteúdo racista”, diz. Para Rosa, porém, a lei deve ser interpretada de acordo com a Constituição, o que exige que se leve em conta a distinção entre dizer algo racista e praticar racismo. “Isso não significa que o Bolsonaro possa fazer o que quiser, é claro que há coisas que são práticas de racismo, mas esses comentários não parecem ser adequadamente descritos como crimes de racismo”, ressalva.
Rosa considera que a questão de fundo na proteção consagrada à liberdade de expressão é o que se deve fazer com aqueles que pensam contrariamente aos valores inscritos na própria Constituição. O questionamento do professor da UFLA é se a Constituição, mesmo condenando atos de racismo, impede que alguém expresse opiniões racistas. “Viola a Constituição pensar de maneira diferente da Constituição?”, pergunta, resumindo o debate.
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