Desde fevereiro, um caso de racismo em Araucária, região metropolitana de Curitiba, tem ganhado projeção e reacendido os debates sobre racismo no Brasil. Janete Martins, uma doceira de 44 anos, recebeu diversas mensagens anônimas por cartas, pelo celular e pela internet. Janete registrou a ocorrência e os atos estão sendo investigados pela polícia como crime de racismo, com base no artigo 20 da Lei 7716/1989, mas nem todas as vítimas desse tipo de atitude têm a mesma atenção do Estado brasileiro, mesmo passados mais de 60 anos desde a aprovação da primeira lei contra o racismo no país.
Conheça o caso
A doceira Janete Martins, de 44 anos, recebeu o primeiro bilhete anônimo de conteúdo racista no dia 17 de fevereiro. No dia 8 de março, recebeu a segunda carta, que foi postada por sua filha em um grupo no Facebook com mais de 330 mil membros, o Clube da Alice. O caso ganhou repercussão nacional. Janete já tinha relatado na rede social que, na véspera de receber o primeiro bilhete, fora insultada por uma mulher que viera procurar os seus serviços para uma festa, mas que começou a agredi-la verbalmente quando viu que doceira é negra. Na madrugada do dia 22 de março, Janete recebeu ligações e mensagens de WhatsApp com ainda mais ofensas e ameaças. Circularam também no Facebook postagens com os documentos pessoais de Janete e seus familiares e com um link para um site, em que havia ofensas a ela e ao promotor Olympio de Sá Sotto Maior Neto.
De acordo com Messias Antonio da Rocha, delegado da polícia civil que cuida do caso em Araucária, como os bilhetes não foram escritos à mão, não é possível fazer a identificação do autor. O delegado informou que ainda não foi possível identificar a mulher que foi até a casa de Janete, porque não há testemunhas ou câmeras na região e doceira ainda não conseguiu fazer o retrato falado ou uma sessão de hipnose, opção oferecida pela polícia diante da dificuldade de lembrar detalhes do que ocorreu. Porém, com autorização da Justiça, já foi solicitada a quebra do sigilo do celular que enviou as mensagens, cujo número é de Pernambuco, e a identificação do IP do computador que criou o site com as ofensas. As solicitações costumam demorar cerca de 30 dias para serem atendidas.
Janete, que buscou tratamento depois dos eventos, relata estar passando por grande pressão psicológica. “Eu pedi para que eles adiassem [o retrato falado], porque eu realmente estou muito mal. Estou tentando me poupar”. Ela não esperava a repercussão que o caso ganhou. “Eu entendo porque as pessoas acabam ficando quietas, você sofre, você tenta esquecer e não consegue. Mas, mesmo sendo difícil, as pessoas devem denunciar”, declara. A doceira destaca também a importância do apoio que tem recebido de familiares, amigos e membros da igreja, além da própria polícia e do Ministério Público.
Mariana Bazzo, promotora e coordenadora do Núcleo de Promoção de Igualdade Étnico-Racial do Ministério Público do Paraná (MP-PR), destaca que, nos últimos anos, inúmeras ações têm sido empreendidas para combater o problema da subnotificação, o que ocorre quando a quantidade de determinados tipos de crimes é bem menor nas ocorrências policiais do que na realidade. “O próprio caso da Janete foi inicialmente registrado como injúria, embora o caso dela seja nitidamente de racismo”, relata Mariana.
Silvana de Oliveira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB do Paraná e a primeira mulher negra a presidir uma comissão da OAB no estado, observa que um dos principais empecilhos ao combate ao crime de racismo é a falta de informações que as pessoas têm sobre o assunto. “Existem muitos casos de pedestres e crianças agredidas verbalmente e até fisicamente nas ruas e nas escolas e nosso desafio é informar população de que isso é um crime que é punido”, diz a advogada.
Mariana destaca que, entre 2013 e 2015, as denúncias de racismo e de injúria racial aumentaram em 511% no estado do Paraná. A promotora atribui esse aumento às iniciativas do Ministério Público junto às Polícias Militar e Civil e à população como um todo, com apoio da OAB do Paraná e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção à Igualdade Racial do governo federal. De acordo com a promotora, a campanha do MP-PR teve dois focos: “As pessoas não podem aceitar duas coisas na hora de registrar um crime racial: primeiro, a confecção de um termo circunstanciado, porque os crimes de racismo ou injúria racial nunca vão para o juizado especial, então sempre haverá inquérito; segundo, que não fosse feita a correta capitulação, diferenciando entre injúria racial e crime de racismo”, resume a promotora.
Racismo e injúria racial
Os atos que a linguagem corrente trata todos como racismo têm diferenças à luz do direito. No Brasil, o artigo 1º da Lei 7.716/1989 prevê que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A lei prossegue elencando em seus artigos uma série de condutas que configuram crimes, como recusar ou obstar o ingresso de pessoas em empregos, estabelecimentos públicos e comerciais em razão de discriminação ou preconceito, e que acarretam diferentes penas.
Racismo na História
No Brasil, a primeira lei contra a prática de racismo foi a Lei 1.390/1951, chamada de “Lei Afonso Arinos”, que transformou em contravenções penais várias práticas discriminatórias. De acordo com o promotor Christiano Jorge Santos, a lei foi aprovada em meio à comoção nacional gerada depois de uma confeitaria no Rio de Janeiro se recusar a servir o motorista negro do então Deputado Federal Afonso Arinos de Melo Franco. O promotor, porém, aponta que aplicação desta lei pelos tribunais brasileiros foi praticamente nula. Em 1988, o inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal transformou o racismo em crime, o que criou a necessidade de uma nova norma, culminando na aprovação da Lei 7.716/1989. O mesmo dispositivo constitucional prevê que racismo é crime imprescritível e inafiançável.
Christiano Jorge Santos, promotor em São Paulo, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor do livro Crimes de preconceito e de discriminação: análise jurídico-penal da Lei n.7716/89 e aspectos correlatos, explica a diferença entre preconceito e discriminação. “Preconceito é uma concepção mal elaborada racionalmente sobre determinada pessoa. Por exemplo, quando alguém diz que todos os negros são preguiçosos ou bandidos, porque cresceu ouvindo isso”, diz. O promotor ressalva que a lei não pune o preconceito, mas sua manifestação. “A manifestação desse preconceito pode ser verbal, gestual ou por meio da discriminação, que é uma diferenciação de uma pessoa negando a ela direitos a que teria acesso”, afirma.
A questão se complica quando se trata de diferenciar entre a conduta descrita pelo artigo 20 da Lei 7716/1989, que prevê o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, e a conduta descrita no §3º do artigo 140 do Código Penal (CP), chamada de injúria qualificada ou injúria racial. “Quando se fala em racismo ou manifestação de preconceito racial, existe uma alusão a toda uma categoria: por exemplo, se eu digo ‘todo negro é bandido’. Mas quando eu falo ‘você, fulano, é um negro bandido’, isso é uma injúria racial, porque estou praticando uma ofensa contra determinada pessoa, mas não contra o coletivo”, elucida o promotor.
A importância da distinção não é só de nomenclatura. Os crimes de racismo que constam da Lei 7716/1989 são todos inafiançáveis e imprescritíveis, por causa da previsão do inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal. Nesses casos, a ação judicial é de iniciativa pública e incondicionada, ou seja, o Ministério Público deve entrar com o processo independentemente da vontade da vítima, uma vez que o bem jurídico tutelado é a coletividade. Já no caso do §3º do artigo 140 do CP, a vítima tem até seis meses para denunciar o caso e a ação é de iniciativa pública condicionada, ou seja, o Ministério Público precisa da anuência da vítima para entrar com o processo.
Delegacia de Vulneráveis
Os esforços da OAB e do Ministério Público do Paraná renderam novos frutos em outubro de 2016, com a criação da Delegacia de Vulneráveis, em Curitiba. A delegacia é um setor especializado no registro e na investigação de crimes de ódio contra a população mais vulnerável. A promotora Mariana Bazzo ressalta que a subnotificação muitas vezes decorre da falta de especialização da polícia na investigação desses crimes.
Desde o início do funcionamento, em dezembro de 2016, a Delegacia registrou 23 ocorrências, sendo nove de injúria racial e cinco de racismo. Dois inquéritos já foram concluídos, mas os processos ainda não começaram.
Conheça a lei: Racismo e injúria racial
Artigo 20 da Lei 7.716/1989: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”.
•Não prescreve nunca;
•Há prisão em flagrante;
•Pode ocorrer sem vítima determinada;
•Ministério Público cuida do processo independentemente da vontade da vítima, quando houver;
Artigo 14 0 , §3º do Código Penal: “Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Pena - reclusão de um a três anos e multa”.
•Prescreve em seis meses;
•Há prisão em flagrante;
•Ocorre contra uma vítima determinada;
•Ministério Público cuida do processo, mas com a prévia concordância da vítima
Milei completa um ano de governo com ajuste radical nas contas públicas e popularidade em alta
Lula cancela agenda após emergência médica em semana decisiva no Congresso
Congresso prepara uma nova fatura para você pagar – e o governo mal se move
Prêmio à tirania: quando Lula condecorou o “carniceiro” Bashar al-Assad