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A interpretação do Direito é tarefa árdua. O Poder Legislativo produz normas jurídicas, formadas por palavras, que deverão orientar o Poder Executivo na gestão da coisa pública e, quando invocadas em um conflito processual entre as partes, serão aplicadas pelo Poder Judiciário para solução da controvérsia.

As palavras são sinais linguísticos que podem comportar diversos significados. Essa diversidade de significação das palavras gerou, ao longo da história, surgimento de correntes de pensamento que se situavam em uma escala entre dois opostos, sendo em um extremo aquelas que defendiam a interpretação literal da lei e, no extremo oposto, as correntes que pugnavam pela livre interpretação dos comandos legais. Entre os extremos, correntes moderadas, tributárias da interpretação histórica, sistemática, contextual, teleológica, axiológica, tópica e congêneres.

Conquanto para muitos o significado linguístico era apenas o início do trabalho interpretativo, para Montesquieu, por exemplo, o velho brocardo in claris non fit interpretatio era a essência de toda interpretação, tanto que o juiz não deveria ser mais do que a “boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar nem a força nem o rigor das leis”(O Espírito das Leis, Livro XI, cap. VI).

Antonin Scalia, célebre juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, igualmente era um defensor ardoroso da interpretação literal. Em seu livro A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law (Edited by Amy Gutmann. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1997) defende que apenas a interpretação textual das leis, de acordo com seu significado original, poderia assegurar um verdadeiro Estado de Direito.

No extremo oposto, outro juiz da Suprema Corte, seu ex- presidente Charles Evans Hughes, peremptoriamente afirmou que “we are under a Constitution, but the Constitution is what the judges say it is”, ou seja, que a lei é aquilo que os juízes dizem que ela é. Essa expressão resume bem o paradoxo formulado por Jon Elster, a propósito da frase de que “os vivos não devem ser governados pelos mortos” (muito utilizada como justificativa a se atualizar significados legislativos), ou seja, de que “cada geração deseja ser livre para obrigar as suas sucessoras, sem estar obrigada por suas predecessoras” (Jon Elster y Rune Slagstad, Constitucionalismo y Democracia. México: Fondo de Cultura Económica, 2013).

As correntes moderadas, por outro lado, eram orientadas para buscar uma compreensão racional no âmbito hermenêutico, fora do radicalismo da interpretação literal e sem os abusos da interpretação livre, a qual poderia ser perigosamente funcionalizada para um governo de juízes. A interpretação literal, obviamente leva a distorções, assim como uma interpretação livre das palavras da lei pode conduzir a exageros, especialmente quando o conteúdo mínimo da significação é ultrapassado pelo intérprete institucional.

Talvez o melhor caminho seja o do meio, no qual o ponto de partida seja a interpretação literal e o ponto de chegada seja uma construção consentânea com o ordenamento jurídico e, principalmente, com a Constituição, sem anular totalmente conteúdo semântico utilizado pelo legislador.

Imagine-se o caso da norma prevista no art. 18, §1º da Constituição: “Brasília é a capital federal.” Conquanto essa norma possa ser interpretada, especialmente em seu sentido histórico, situando Brasília como a cidade construída no Planalto Central por Juscelino Kubitschek e não qualquer outra que tenha o mesmo nome, parece evidente que o intérprete se encontra jungido, ainda que minimamente, ao conteúdo semântico das palavras utilizadas na construção da norma. Não caberia dizer, por exemplo, que por Brasília deve ser entendida qualquer cidade brasileira que possa servir como capital, ainda que tenha outro nome.

Perfilhando essas premissas, um caso recente e interessante ilustra bem a concretização de um precedente jurisprudencial fruto de uma hermenêutica criativa. Trata-se do caso da impenhorabilidade dos valores depositados em conta poupança.

Desde sua instituição pelo Imperador Dom Pedro II, pelo Decreto 2.723, de 12.01.1861, a Caderneta de Poupança sempre foi uma forma de depósito bancário destinado a pessoas de baixa renda, as quais teriam seus valores remunerados e assegurados pelo Estado e estariam isentas da incidência do imposto sobre a renda. No próprio decreto imperial constava que a “criação de uma Caixa Econômica que tem por fim receber a juro de 6% as pequenas economias das classes menos abastadas, e de assegurar, sob garantia do Governo Imperial, a fiel restituição do que pertencer a cada contribuinte, quando este o reclamar”.

O novo Código de Processo Civil, no artigo 833 (repetindo disposição contida no art. 649, X, do CPC anterior), protegeu a caderneta de poupança com o manto da impenhorabilidade nos seguintes termos: “Art. 833. São impenhoráveis: [...] X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos. [...]”

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia reconhecido anteriormente que essa garantia protegia o “pequeno investidor detentor de poupança modesta, atribuindo-lhe uma função de segurança alimentícia ou de previdência pessoal e familiar” (STJ, REsp 1191195 / RS).

A preocupação inicial de muitos intérpretes foi no sentido de que a lei não havia criado uma forma de impenhorabilidade a critério do devedor, ou seja, tomando ciência de que corre contra si uma execução judicial, o devedor carrearia seus investimentos para uma ou várias cadernetas de poupança para protegê-los da penhora.

Sempre defendi que no caso de impenhorabilidade de valores depositados em caderneta de poupança, a parte executada, além de provar que os valores constritos encontravam-se depositados nessa modalidade de conta por ocasião do bloqueio, deveria também comprovar que já possuía os recursos quando de sua citação, marco a partir do qual toma ciência de que existe demanda em trâmite contra si.

Muito embora essa interpretação não tenha sido muito debatida nos Tribunais, o fato é que havia uma inclinação da jurisprudência (desde a vigência do CPC anterior) de se preservar o conteúdo semântico da expressão “caderneta de poupança”, assim como sua concepção histórica no sentido de ser um instrumento financeiro regulado para pessoas de baixa renda guardarem suas economias.

Havia precedentes, aliás, interpretando a norma da impenhorabilidade teleologicamente, pugnando a desconsideração da regra da impenhorabilidade quando a caderneta de poupança fosse utilizada pelo devedor como conta-corrente, fraudando o sentido da proteção legal. Os precedentes abaixo ilustram essa situação.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO LEGAL. TRIBUTÁRIO. BACENJUD. CONTA-POUPANÇA. PENHORABILIDADE. DESVIRTUAMENTO. O entendimento desta Corte é no sentido de que, sendo movimentada como se conta corrente fosse, a conta de poupança não merece a proteção prevista no art. 649, X, do CPC. Não faz sentido reconhecer a proteção estabelecida no dispositivo supracitado apenas por ser nominada formalmente de conta poupança e render remuneração, uma vez que a impenhorabilidade em questão visa a resguardar os investimentos do pequeno poupador. (TRF4 5028661-61.2014.404.0000, Segunda Turma, Relator p/ Acórdão Jairo Gilberto Schafer, juntado aos autos em 04/02/2015)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA DE VALORES VIA BACENJUD. ART. 649 DO CPC. IMPENHORABILIDADE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. A regra de impenhorabilidade estatuída no inciso X do art. 649 do CPC é absoluta, não podendo ser limitada em função da existência de outros valores à disposição do executado, impenhoráveis por motivo diverso, uma vez que as hipóteses de impenhorabilidade do art. 649 são independentes, e resguardam direitos básicos diversos - tais como moradia, subsistência e, no caso, economias do pequeno poupador - podendo ocorrer concomitantemente. De fato, se o executado possuísse mais de uma conta poupança, daí sim poderia se falar em liberação de um total de 40 salários mínimos, consideradas ambas as aplicações (REsp 1231123/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 30/08/2012). No caso, não há provas da impenhorabilidade dos valores depositados na conta nº 00022206-3, agência 3962. De fato, a conta bancária em que foi efetuado o bloqueio se trata de conta poupança, conforme indicam os extratos apresentados pelo agravante (evento 33 - OUT2 e evento 38, EXTR2, do processo originário). No entanto, os documentos apontam que a conta não é por ele utilizada para constituir reserva financeira - o popular “pé de meia” -, a merecer a proteção prevista no art. 649, X, do CPC, mas são sim para movimentações típicas de conta corrente, do que são exemplos débitos para pagamento de jornal, diversos saques, recebimentos e etc. (TRF4, AG 5009486-13.2016.404.0000, SEGUNDA TURMA, Relator CLÁUDIA MARIA DADICO, juntado aos autos em 25/05/2016)

O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, praticando uma hermenêutica liberta do conteúdo semântico, inovou no entendimento da questão e passou a considerar como “caderneta de poupança”, para fins de se atrair a regra da impenhorabilidade, também a conta-corrente, fundos de investimento e até mesmo valores em espécie que o devedor tenha em seu poder (REsp 1340120/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/11/2014, DJe 19/12/2014).

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região recentemente sumulou a matéria nos seguintes termos:

Súmula 108 do TRF4: É impenhorável a quantia depositada até quarenta salários mínimos em caderneta de poupança (art. 833, X, NCPC), bem como a mantida em papel moeda, conta-corrente ou aplicada em CDB, RDB ou em fundo de investimentos, desde que seja a única reserva monetária, e ressalvado eventual abuso, má-fé, ou fraude.

Obviamente, é possível se defender, com alguma racionalidade, que tais entendimentos jurisprudenciais buscam uma intepretação teleológica ou finalista para a regra da impenhorabilidade. Em outras palavras, se a finalidade da norma era proteger a pessoa de baixa renda, impedindo que Estado tivesse acesso às suas economias, então a impenhorabilidade deve ser entendida no sentido de se proteger tais economias, independentemente de onde se encontram.

Convenhamos, no entanto, que a lei foi suficientemente técnica ao dar concretude à proteção de determinado instrumento financeiro (“caderneta de poupança”) e não os outros (conta-corrente, fundos de investimentos, ações), tampouco tendo se utilizado de conceitos indeterminados para se chegar ao objetivo pretendido. A lei se valeu de uma expressão de conteúdo semântico conhecido desde 1861 e nacionalmente difundido, prestigiando a poupança popular em detrimento de outras formas de investimento.

A jurisprudência, sob pretexto de uma interpretação teleológica, simplesmente esvaziou de sentido o signo linguístico utilizado pela lei. Parafraseando o juiz Charles Evans Hughes, anteriormente citado, no Brasil caderneta de poupança não é um termo financeiro, mas significa exatamente o que o juiz diz que essa expressão significa, ainda que seja outra coisa.

*Anderson Furlan é juiz federal, e foi presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe) em duas gestões.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem necessariamente o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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