Alguns doutrinadores já se referiram ao embate entre Fisco e Contribuintes como um “jogo de gato e rato”, no qual o Fisco sempre tentar agir legislativamente para diminuir as rotas de fuga dos contribuintes, ao mesmo tempo em que estes sempre procuram (e invariavelmente encontram) novas formas de fugir da incidência dos tributos.
No âmbito do processo de execução fiscal, regulamentado pela Lei nº 6.830, à qual se aplica subsidiariamente o Código de Processo Civil, é muito comum a Fazenda Nacional buscar a responsabilização pessoal dos sócios-gerentes pelas dívidas fiscais da empresa (desde que obviamente preenchidos os requisitos previstos pelo art. 135 Código Tributário Nacional).
Nos casos de responsabilização, caso os bens da própria empresa não sejam suficientes para ressarcir o Erário, busca-se bens dos próprios sócios para saldar o débito.
Como a responsabilização é algo relativamente comum, os sócios-gerentes, para salvaguardarem seu patrimônio, comumente tomam a precaução de criarem pessoas jurídicas (empresas) com a função de administrar os próprios bens (empresas administradoras de bens próprios).
Sobra à Fazenda Nacional, então, solicitar ao Juiz da Execução a desconsideração da pessoa jurídica criada para administrar os bens próprios, de forma que tais bens possam responder pela dívida da empresa.
Não se está a tratar aqui do mérito da responsabilização pessoal dos sócios ou administradores, tal como prevista no art. 135 do Código Tributário. Parte-se da premissa que essa responsabilização já foi decidida. Todavia, os sócios responsabilizados não possuem bens em nome próprio, mas em nome de alguma empresa constituída para essa finalidade.
Qualquer pessoa, evidentemente, é livre para organizar seus negócios da forma que melhor lhe aprouver, inclusive para constituir uma empresa para administrar seus bens pessoais. No entanto, repugna a qualquer ordenamento jurídico eventual concepção de direitos absolutos. Mesmo uma empresa constituída de acordo com as formas legais, pode ter sua existência desconsiderada.
A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica tem origem na jurisprudência inglesa (Salomon x Salomon & Co., House of Lords, 1897) e norte-americana, sendo conhecida por “disregard doctrine” ou “disregard of legal entity”. Foi posteriormente desenvolvida pelos juristas alemães, ficando conhecida como “Durchgriff”, que basicamente significa “penetração na pessoa jurídica”.
Na doutrina nacional, a desconsideração da pessoa jurídica foi tratada pioneiramente por Rubens Requião (Abuso de Direito e fraude através da personalidade jurídica “disregard doctrine”. In: França, Rubens Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v.2).
Levantar o véu da pessoa jurídica, penetrar na pessoa jurídica ou desconsiderá-la, traduz uma reação do ordenamento jurídico e da jurisprudência contra a utilização abusiva da personalidade jurídica para se atingir fins ilícitos em benefício de pessoas físicas.
A jurisprudência brasileira há muito vem desconsiderando a personalidade jurídica para se capturar bens de pessoas físicas acobertados pelo manto da ficção jurídica.
Em acórdão célebre do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Desembargador Edgar de Moura Bittencourt assinalou que a “assertiva de que a sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios é um princípio jurídico, mas não pode ser um tabu a entravar a própria ação do Estado, na realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude do juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao direito” (RT 238/393).
Outro acórdão considerado referência na matéria foi da lavra do então Desembargador Athos Gusmão Carneiro:
“Sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Execução fiscal com penhora em bens do sócio-gerente. Embargos de terceiro. Sociedade realmente fictícia, em que o sócio-gerente é dono de 99,2% do capital, sendo os restantes 0,8% de sua mãe e de um concunhado. A assertiva de que a pessoa da sociedade não se confunde com a do sócio é um princípio jurídico básico, não um tabu, e merece ser desconsiderada quando a sociedade é apenas um alter ego de seu controlador, em verdade comerciante em nome individual. Lição de Konder Comparato. Embargos de terceiro rejeitados. Apelação provida” (TJ/RS, Ap. 583018577, 1ª C, ,julgada em 08.05.1984, Rel. Des. Athos Gusmão Carneiro, RT 592/172)
O Supremo Tribunal Federal igualmente já decidiu contra o abuso de personalidade jurídica para fraudar direitos de terceiros:
“Personalidade Jurídica. Possível desconsiderar-se a personalidade da pessoa jurídica sob controle absoluto da pessoa física, se ambas em conluio para fraude a direito de terceiros. – Aplicação da teoria inglesa e norte-americana da disregard of legal entity, surgida no direito mercantil, mas aplicável igualmente no civil como no tributário.”(STF - RE 94.066-9 - RJ, Relator Ministro Clóvis Ramalhete, DJU de 2 de Abril de 1985, p. 2885)
Diversos comandos normativos autorizam essa desconsideração no Direito brasileiro, entre os quais o art. 2º, §2º do Decreto-Lei nº 5.452/43 (Consolidação das Leis do Trabalho), o art. 28 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), o art. 18 da Lei nº 8.884/94 (Lei de Defesa da Concorrência), implicitamente no art. 160 da Lei nº 3.071/1916 (antigo Código Civil Brasileiro) e o no art. 50 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro). Este comando normativo expressamente dispõe que:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Em uma primeira leitura, trata-se de desconsiderar a individualidade jurídica e patrimonial da empresa para que os bens particulares dos sócios ou administradores respondam pelos débitos contraídos em nome da pessoa jurídica. Mas os termos do artigo não impedem que se interprete a autorização para se desconsiderar a pessoa jurídica quando o abuso da personalidade está no desvio de finalidade (da própria criação da empresa e não de sua atividade estatutária), qual seja, servir para escamotear bens que, em tese, deveriam servir para recomposição do Erário defraudado (repetindo: partindo-se da premissa de que a responsabilização atendeu aos requisitos legais do art. 135 do CTN).
No caso específico da “empresa administradora de bens próprios”, quando utilizada com o propósito evidenciado de “blindar” o patrimônio do devedor responsabilizado pelas dívidas de outra pessoa jurídica, a desconsideração da “administradora” pode e deve ser compreendida - para além do art. 50 - pela perspectiva do abuso de direito, previsto pelo art. 187 do Código Civil, in verbis:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Mesmo que a constituição de uma tal pessoa jurídica seja um ato jurídico formalmente lícito, mesmo que sua finalidade estatutária esteja sendo cumprida (administrar os bens), o próprio ato jurídico de criação da pessoa jurídica pode ter sido praticado com finalidade diversa para qual foi concebido pela lei ou, ainda, sendo utilizado para impedir a eficácia de uma outra norma jurídica, configurando, assim, abuso no exercício do direito de organização negocial.
Conquanto algumas soluções normativas primam por negar proteção jurídica ao direito exercido de forma abusiva, o Código Civil Brasileiro (art. 187) expressamente qualifica como ilícito o ato abusivo.
Mesmo que se possa se controverter sobre a natureza jurídica do abuso de direito e suas conseqüências, outro instituto jurídico também proíbe a defraudação de leis imperativas. Trata-se da fraude à lei.
Figura há muito conhecida e debatida pela doutrina, revela-se na tentativa de subsumir determinada conduta a alguma norma do ordenamento jurídico de forma a evitar a aplicação de outra norma de natureza imperativa. Utiliza-se uma norma de cobertura para defraudar a aplicação de outra norma jurídica não desejada pelo agente.
Em outras palavras, equivale a se valer da liberdade para se constituir uma empresa e a ela transferir seus bens e, com esse procedimento, evitar que outra norma, a que determina a responsabilização pessoal dos sócios, possa ser aplicada. Uma conduta formalmente lícita, mas contrária ao ordenamento jurídico. Não se viola a lei; contorna-a.
Por qualquer ângulo que se analise, percebe-se que o ordenamento jurídico fornece instrumentos para se combater o abuso de direito consubstanciado na criação de uma pessoa jurídica especificamente destinada a abrigar bens de pessoas físicas que tenham sido responsabilizadas pelo pagamento de dívidas, ao fisco ou a terceiros. Não é justo nem tolerável que devedores se escondam atrás do manto da pessoa jurídica para se locupletar, em prejuízo de terceiros de boa-fé ou da própria sociedade.
*Anderson Furlan, juiz federal, especialista, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor das obras Direito Ambiental (Ed. Forense) e Planejamento Fiscal (Ed. Forense), além de outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Foi presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais - APAJUFE (2010-2012; 2014-2016). Escreve quinzenalmente para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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