Autores gregos antigos praticamente concordavam que a monarquia (governo de um) e a aristocracia (governo dos melhores) eram formas de governo legítimas, que poderiam, no entanto, se degenerar em tirania (governo de um tirano) e oligarquia (governo de um grupo ou uma classe). Politeia e democracia, ambos significando governo de muitos, praticamente eram termos equivalentes, muito embora a democracia fosse uma ampliação da politeia - o que nem sempre era bem vista pelos antigos.
Com a evolução social, as cidades-estado deram origem aos impérios, que se transformaram ao longo dos séculos naquilo que conhecemos como Estados modernos. Apesar de algumas variações procedimentais e exceções, é possível afirmar que nas cidades-estado, com a vida política restrita aos limites territoriais da comunidade, o poder era exercido por meio de assembleias populares e as deliberações executadas pelo monarca ou pelos aristocratas, que muitas vezes também acumulavam a função de julgar.
A partir do aumento dos limites territoriais e a formação de reinos e impérios, a participação popular passou a se dar por intermédio de representantes. A ideia é muito simples: não sendo factível o deslocamento de milhares de pessoas de toda a extensão do império ou reino para participarem de assembleias, a praticidade recomendava que as comunidades enviassem representantes à capital para que seus reclamos fossem levados em consideração na formulação das leis e tomadas de decisão. Conquanto houvesse um predomínio da vontade dos monarcas em muitas áreas decisórias, mesmo nos impérios antigos e nas monarquias absolutistas existiam instâncias em que a vontade dos súditos (ainda que apenas parte deles, como a nobreza) pudesse ser expressada.
Com as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), aprofundou-se a noção que legitimidade de uma lei pode ser aferida não apenas pela observância aos procedimentos formais, mas também pela sua correspondência aos anseios da maioria, desde que isso não importe restrições indignas à minoria. Por isso, quanto maior a participação dos súditos na aferição da vontade popular, por meio de seus representantes, maior a legitimidade da lei, maior a possibilidade de servir como instrumento de coerção social.
A relação de correspondência entre a vontade dos representantes e a vontade dos representados nem sempre foi marcada pela perfeita identidade de propósitos. Percebeu-se muito cedo que os representantes, cada vez mais incumbidos de representar milhares de vontades individuais, nem sempre conseguiam vocalizar a vontade da maioria. A grande distância e a esmaecida comunicação com os representados, somadas à proximidade de outros elementos que pudessem influenciar seus votos (como promessa de cargos e incentivos financeiros), colaboravam para disruptura de propósitos. Para sanar essa falha no exercício da representação parlamentar, recorrentemente surgiam alusões à adoção de um mandato imperativo, em que o representante ficasse obrigado a cumprir o que lhe foi determinado, sob pena de perder o mandato.
O exercício da representação é uma daquelas atividades, como os correios, em que muito pouco se evoluiu nos últimos dois mil anos. Os cidadãos, por impossibilidade física de comparecerem pessoalmente para tomada de decisões coletivas, continuam votando em seus representantes, os quais são incumbidos de levar a vontade de seus representados para as discussões necessárias à formulação das leis que obrigarão a todos.
Em um momento em que o Brasil discute uma reforma política, seria recomendável que a tecnologia fosse levada ao centro desse debate.
A revolução tecnológica, no final do século XX, com o aprimoramento da tecnologia e a massificação da internet, tem gerado um aumento exponencial do conhecimento e da informação, além de um maior engajamento popular em vários assuntos. As manifestações populares que sacudiram o país em junho de 2013, apesar de difusas em seus pleitos, tinham um alvo muito claro: a deficiência representativa. Quando o país se mobilizou para que a presidente da República vetasse dispositivos do Código Florestal aprovado pelo Congresso, novamente a mensagem era muito clara: os representantes votaram contra o interesse dos representados.
Não se discute que o Parlamento é um foro adequado para o debate e amadurecimento de ideias. Não se discute que temas graves devam ser analisados sem paixões e longe do calor dos acontecimentos. Da mesma forma, indiscutível que assuntos complexos, com impactos na economia e sistema financeiro, como regimes de financiamento e normas tributárias, devam ser analisados de forma técnica e consequencial.
Ao mesmo tempo em que se afirma e reconhece o Parlamento como uma instância de discussão e decisão crucial para Democracia, não se pode deixar de reconhecer que a representação popular nessa mesma instância padece de falhas graves, sendo a mais relevante o divórcio entre a vontade dos representados e a vontade externada pelos representantes eleitos. Divórcio essse que pode ter como origem diversas causas, de uma simples conveniência política (abandonando uma posição agora para conseguir apoio para outra que seja mais importante para sua comunidade), a submissão a lobbies ou mesmo para satisfação de interesses pessoais ou do grupo político (como a assunção de cargos públicos em comissão).
A mesma tecnologia que vem banindo intermediários em diversas áreas, como demonstrei na coluna anterior, pode ser utilizada para melhorar a qualidade e a legitmidade da manifestação popular como elemento essencial da democracia.
Assim como o plebiscito (em 1993, para se decidir sobre o sistema e a forma de governo) e o referendo (em 2005, para se decidir sobre o porte e comercialização de armas) já foram utilizados no Brasil, demonstrando que a população pode e deve ser ouvida sobre assuntos de elevado impacto social, é razoável supor que essa prática, antes custosa e demorada, possa ser aprimorada com o uso da tecnologia para que a população acostume-se a se manifestar sobre assuntos vetores para a sociedade.
A população poderia ter sido consultada sobre diversos aspectos do novo Código Florestal, sobre condições de elegibilidade para cargos públicos, financiamento eleitoral por pessoas jurídicas, fim do voto obrigatório, assim como ainda pode ser consultada sobre assuntos como circos, rodeios, zoológicos, foie gras e outros que envolvam crueldade com animais, remas relativos a crimes e sobre a questão da maioridade penal, normas sobre alimentação, educação, defesa do consumidor, entre tantos outros.
Em um mundo no qual as pessoas de todas as idades estão fazendo compras pela internet, trabalhando e se divertindo em rede, guiando-se nas ruas por smartphones, comunicando-se instantaneamente, lendo livros e notícias on line, participando de programas de financiamento coletivo pela web, engajando-se em movimentos políticos pelas redes sociais, fazendo declarações de imposto de renda por aplicativos, enfim, certamente estarão minimamente aptas a externarem sua vontade acerca de assuntos que podem influenciar a sua vida ou a vida de sua comunidade, estado ou país.
As ferramentas tecnológicas para possibilitar que os cidadãos possam participar efetivamente da produção de leis existem e estão disponíveis. Com a maior participação popular, as leis serão feitas com mais densidade democrática e terão maior legitimidade social. As pessoas voltarão a participar da formação da vontade política de sua polis, aumentando o engajamento cívico e a própria noção de pertença ao grupamento social. Diminui-se a alienação política e aumenta-se fiscalização popular sobre cumprimento da lei.
A lei, como instrumento de regulação social, é um contrato firmado entre todos os cidadãos, cada um obrigando-se perante os demais, sofrendo sanção caso descumpra as cláusulas do contrato. Se em algum momento da história os cidadãos delegaram a terceiros procuração para celebrar esse contrato, através da discussão e votação de leis, chegou a história a um momento em que as condições tecnológicas permitem devolver aos cidadãos parte dessa autonomia. Devolver aos cidadãos o direito de se auto-obrigarem.
Para se colocar em prática essa “Lei 2.0” é necessário existir vontade política, a qual, no jargão parlamentar, significa a vontade dos representantes em colocar em discussão e votação determinado projeto normativo. Aqui vem o grande dilema: a auto-mutilação do próprio poder dos representantes em benefício de uma maior participação popular pode novamente ser motivo para o divórcio entre a vontade dos representantes e a vontade dos representados. Apesar das dificuldades, esse é um caminho sem volta. Não tardará para que uma nova geração venha sacodir o sistema e reeditar o movimento pelas “Diretas já”, mas agora sob os auspícios e a perspectiva do Século XXI.
*Anderson Furlan: juiz federal, especialista, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor das obras Direito Ambiental (Ed. Forense) e Planejamento Fiscal (Ed. Forense), além de outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais - APAJUFE (2010-2012; 2014-2016). Escreve quinzenalmente para o Justiça & Direito