Subsiste na China antiga prática “medicinal” de se utilizar líquido produzido pela bile de ursos negros (Ursus thibetanus) para tratamento de doenças relacionadas aos olhos e ao fígado de seres humanos, assim como para fabricação de pomadas e xampus. Algumas empresas farmacêuticas chinesas, e também criadores particulares, mantêm centenas, talvez milhares, de ursos aprisionados em pequenas gaiolas, praticamente do tamanho do corpo do animal. São as chamadas “fazendas de bile”.
Esses ursos sofrem uma incisão no abdômen, na qual são colocados cateteres responsáveis por escoar o líquido biliar. Duas vezes ao dia os ursos são “ordenhados” para retirada de pequenas quantidades do líquido. As ordenhas são realizadas durante a alimentação do urso, momento no qual a bile seria naturalmente transportada para a digestão do alimento.
Sem poderem se mexer por longos anos e geralmente colocados em posição horizontal, os músculos atrofiam, o que causa dores intensas, mas não tão intensas quanto a dor decorrente da inflamação das regiões pelas quais passa o cateter. Os animais sofrem severos transtornos mentais e psicológicos. Visitas feitas por entidades de proteção animal encontraram ursos auto-mutilados, machucados, sem conseguir caminhar sozinhos quando colocados fora das jaulas. Muitos deles tentam desesperadamente rasgar a própria barriga, na tentativa de retirar o objeto que causa dor. Para evitar o prejuízo, os criadores costumam colocar cintas de metal para proteger o cateter, aumentando ainda mais o sofrimento do animal. O índice de mortalidade por infecção gira em torno de 50% a 60%.
Suponha-se, agora, que um empreendedor brasileiro, impressionado com o baixo custo de produção e o alto lucro das vendas, resolva comprar duas dezenas de ursos de zoológicos ou circos brasileiros para formar sua própria fazenda de bile. Sua intenção é vender o líquido biliar do urso na forma de xampus para o fortalecimento capilar. Suponha-se, ainda, que tenha conseguido os alvarás e licenças necessárias para iniciar sua atividade. Em tese, o ordenamento jurídico brasileiro protege a livre iniciativa e nenhuma lei específica proíbe a manutenção do urso em cativeiro ou condena o uso do líquido biliar do animal.
O empreendedor, entretanto, necessita lidar com um problema: grupos de ativistas pelos direitos dos animais resolvem pressionar seus representantes legislativos para que se proíba a venda da bile de urso nos limites do seu Município.
Diante de tamanha e evidente crueldade praticada contra os ursos, poderia algum Município brasileiro proibir o comércio do líquido biliar nos limites de seu território?
Para responder a essa pergunta, importa analisar as balizas constitucionais para a atuação dos Municípios em sua missão de proteger os animais contra a crueldade.
Não se encontra nos artigos delimitadores das competências legislativas (arts. 22, 24, 25, 30 e 32) qualquer menção à competência dos entes federativos para proteger os animais da crueldade humana. Isso não quer dizer que não exista tal competência. Ela existe, mas foi topicamente colocada no capítulo que trata do meio ambiente (art. 225, §1º, VII).
A Constituição Federal foi enfática ao afirmar, em seu art. 225, §1º, que incumbe ao Poder Público (aqui incluído o Município) “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.” Apesar da redação um tanto truncada, extrai-se da leitura do artigo um comando expresso para que o Poder Público proíba, na forma de lei, práticas que submetam os animais à crueldade.
A vedação à crueldade é um dever indeclinável do Poder Público. Não se trata de um belo conselho que o legislador constituinte de 1988 deixou aos futuros gestores públicos e legisladores. Trata-se de um mandamento nuclear que não acomoda exceções. É um imperativo de impossível redução semântica. Cabe ao Poder Público expedir normas para proteger os animais contra a crueldade e agir impreterivelmente para impedi-la, sendo inconstitucionais todas as tentativas de se fraudar esse mandamento constitucional invocando o abrigo de outros valores, como os valores culturais, desportivos, religiosos e, mesmo, terapêuticos ou alimentícios.
Diante desse compromisso constitucional, tem a União, Estado e Municípios competência administrativa e legislativa para atuar contra a crueldade. Identificadas ações e condutas que violem a proibição de crueldade, estão os entes públicos obrigados a agir.
Ao interpretar o referido artigo, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que o Estado, a par de promover a difusão das manifestações culturais, deve agir para vedar a crueldade, tal como imposto pela Constituição (RE 153.531). Em outras palavras, disse que nem os sagrados valores culturais de um povo podem servir de justificativa para a crueldade contra animais. Também decidiu (ADI 1856/RJ) que todos os animais estão constitucionalmente protegidos contra a crueldade, não podendo atividades desportivas, religiosas, folclóricas ou culturais servirem de pretexto para fraudar o texto constitucional na parte que veda a crueldade.
O Município não apenas pode como está obrigado a editar normas para vedar a crueldade. O art. 225 da Constituição Federal obriga a pronta atuação do Poder Público no sentido de buscar a vedação (incluída aqui a diminuição) da prática de atos cruéis contra animais. A venda de produtos resultantes da prática de atos cruéis estimula a crueldade. A proibição da comercialização de tais produtos contribui para diminuição da crueldade. A lei municipal que proíba o comércio de líquido biliar dos ursos é mais fiel à Constituição do que as leis federais e estaduais que regulamentam o comércio e que não foram suficientemente tempestivas para cumprir a determinação constitucional nesse aspecto.
Não se discute se a competência para legislar sobre produção e consumo pertence à União e aos Estados (art. 24, V). Todavia, quando a Constituição determina a proibição da crueldade (art. 225), a questão já foi inapelavelmente decidida: a crueldade é inadmissível e intolerável. Não existe margem para se atuar em sentindo contrário ou permiti-la em qualquer grau. Nenhuma tradição farmacêutica, homeopática, alimentar, desportiva, religiosa, cultural ou folclórica pode ser usada como pretexto para se fraudar a Constituição Federal. A proibição irrestrita e incondicional de qualquer ato cruel contra animais é um imperativo constitucional, cabendo a todos os entes federativos a obrigação de vedá-la, inclusive legislativamente.
Ainda que se pudesse sustentar que a ordem emanada indistintamente ao Poder Público (art. 225) estivesse condicionada às normas definidoras das competências, especialmente a competência concorrente da União e Estados e a competência municipal para legislar sobre interesse local, nem assim seria possível afirmar que o Município não teria competência para proibir o comércio da venda do líquido biliar em seu território.
O Supremo Tribunal Federal, ao longo dos anos, não encontrou uma fórmula definitiva para se estabelecer qual a legislação predominante. Analisando-se os precedentes, é possível se afirmar que, embora oscilante, inclina-se o Supremo para prestigiar a lei que mais protege o valor constitucional em questão. Essa foi a tônica dos votos, quando do julgamento da ADI 3.937 contra a Lei nº 12.684/07, ao decidir o Supremo que a lei estadual paulista, que proibiu o comércio de amianto no Estado de São Paulo, era mais fiel ao mandamento constitucional (de proteção à saúde) do que a lei federal que autorizava o referido comércio.
Esse entendimento foi colocado em análise no recente julgamento do RE nº 586.224, que tratava da questão de saber se lei municipal, para proteger o meio ambiente, poderia proibir a queimada da palha da cana de açúcar, contrariando lei estadual que a permitia. Nesse julgamento foi firmada a tese de que “o Município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e Estado no limite do seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados”.
A uma primeira vista, poderia parecer que a questão restou definitivamente julgada e uma lei municipal não poderia contrariar uma lei estadual ou federal. Mas essa conclusão não é tecnicamente verdadeira.
No julgamento da questão da queimada da palha de cana, a premissa era que a lei estadual também protegia o meio ambiente, impondo a proibição através de uma redução gradativa das queimadas, atendendo a situações peculiares e prestando atenção aos investimentos e evolução tecnológica para superação do problema. Sendo assim, tem-se duas leis (estadual e municipal) com a mesma finalidade (redução/proibição das queimadas), apenas se distinguindo quanto à forma e prazo para se chegar ao mesmo objetivo.
Analisando-se ambos os precedentes (amianto e queimada da palha da cana), ainda não é possível se afirmar, por exemplo, qual seria o resultado de um julgamento sobre a constitucionalidade de lei municipal sobre a pesca, que tenha por objetivo proteger o meio ambiente. Tenha-se, por premissa, que a Constituição estabelece, no seu art. 24, que compete à União e Estados legislarem concorrentemente sobre a pesca. Imagine-se, por exemplo, que o Município de Bonito/MS, para preservar seu belíssimo meio ambiente, fonte de grande receita turística, resolva proibir a pesca em todos os rios e lagos municipais, ainda que a União e o Estado de Mato Grosso do Sul permitam. Não parece sem razão entender que a legislação municipal, por ser mais protetiva (ainda que se trate de interesse local), deva prevalecer sobre as leis federal e estadual.
Essa conclusão decorre do fato de que a legislação federal e a estadual não têm por objetivo acabar com a pesca para proteger o meio ambiente, ao passo que a legislação municipal teria exatamente esse objetivo, diante de um interesse local que tem na proteção do ambiente uma fonte extra de receita municipal - algo que nem indiretamente foi objeto de consideração pelos legisladores federal e estadual. Portanto, protegendo mais o meio ambiente, mais fiel ao mandamento constitucional seria a lei municipal e, assim, constitucional.
Por outro lado, imagine-se mais um exemplo. Para se proteger o boto da Amazônia, o legislador municipal resolva proibir a pesca da piracatinga em determinado Município, pois muitos pescadores costumam matar botos para que sirvam de isca para atrair a piracatinga. Acrescente-se, ainda, que o boto é protegido por lei federal (Lei nº 9.605), a qual pune com pena de prisão o autor de atos contrários à vida do boto da Amazônia. Havendo lei federal que regulamente a pesca, mas sem se referir especificamente ao peixe piracatinga, poderia a lei municipal proibir a pesca dessa espécie para proteger outra espécie ameaçada de extinção? Novamente a resposta deve ser afirmativa, uma vez que a lei municipal é mais fiel à Constituição Federal do que a lei federal, além de se legitimar na lei federal que protege espécies ameaçadas de extinção.
Percebe-se que, mesmo diante da competência concorrente da União e Estados sobre temas sensíveis, não se pode excluir a possibilidade de uma lei municipal contrariar a legislação federal e estadual em aspectos pontuais, desde que seja mais fiel à Constituição, ou seja, proteja de forma mais eficaz o valor constitucional.
E se é assim em relação a determinadas áreas em que a Constituição Federal outorgou competência a União e Estados em termos genéricos, como produção, consumo e proteção ao meio ambiente, fauna e flora, não se pode olvidar que em matéria de crueldade contra animais, onde existe uma ordem direta a todo o Poder Público para impedí-la, a zona de incerteza acerca da constitucionalidade da lei municipal praticamente desaparece.
Cabe a todo o Poder Público, aqui incluídos Municípios, Estados e União, atuarem, com os instrumentos normativos e administrativos que possuem, para vedar a crueldade onde ela se manifestar. A indiferença à crueldade contra animais é uma doença e demonstra o nível de civilidade de um povo. Onde quer que ela se manifeste, deve ser enfrentada e derrotada. Essa a missão indeclinável e irrenunciável que a todos incumbiu a Constituição Federal. Seja para a venda do líquido biliar do urso, seja para a venda do foie gras.
*Anderson Furlan: juiz federal, especialista, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor das obras Direito Ambiental (Ed. Forense) e Planejamento Fiscal (Ed. Forense), além de outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais - APAJUFE (2010-2012; 2014-2016). Escreve quinzenalmente para o Justiça & Direito .
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