Houve um tempo em que a democracia era exercida diretamente pelos cidadãos, reunidos em assembleias. Foi por essa época que o termo “Política”, derivado do grego “pólis” (cidade), foi cunhado, para representar o diálogo e o consenso dos cidadãos na procura do bem-comum para a cidade onde vivem, implicando no múnus de se decidir como será gerida a coisa pública (res publica).
Com o crescimento populacional, o aumento da complexidade da vida em sociedade e o fato de nem todas as pessoas residirem nas capitais, desde a antiga Roma as atividades do Poder Legislativo são exercidas por representantes eleitos pela população.
A Constituição Brasileira, logo no art. 1º, parágrafo único, declara solenemente que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
No último domingo (03.10.2016), milhares de cidadãos votaram para escolher os novos prefeitos e vereadores das cidades onde vivem. Serão aproximadamente 57 mil vereadores nos 5.570 municípios, além de um prefeito para cada município.
Nesta grande celebração cívica, chama a atenção o fato de que 25 milhões cidadãos não foram às urnas exercer seu direito de escolher seus representantes. São cerca de 17,58% do total de eleitores que simplesmente não fizeram questão de aparecer na zona eleitoral. Somados aos eleitores que votaram em branco ou anularam seus votos, o percentual praticamente dobra, chegando a 38,1% dos eleitores no município do Rio de Janeiro, por exemplo, ou 38,48% dos eleitores do município de São Paulo. Em muitos pleitos, a soma dos votos dos insatisfeitos superou os votos dos prefeitos que venceram no primeiro turno.
Apesar de o país viver o auge de sua democracia, com votações eletrônicas rápidas e confiáveis, inexistência de problemas estruturais para o exercício do direito de votar e intenso debate televisivo e nas redes sociais das propostas apresentadas, paradoxalmente grande parte do eleitorado renunciou ao exercício da democracia.
Em uma época de grave crise econômica, com índices altíssimos de desemprego e denúncias cotidianas envolvendo corrupção em órgãos e empresas públicas, invariavelmente vinculadas a representantes e partidos políticos, seria natural esperar que a maioria absoluta dos eleitores tratasse de escolher mais cuidadosamente os novos representantes para administrar a coisa pública.
Não obstante, depois de multidões de cidadãos terem saído às ruas para protestar contra a corrupção, mas ainda insatisfeitos com a forma pela qual se faz política e indignados com seus representantes, um número muito maior deixou de votar justamente nas pessoas que se encarregarão de tomar conta do dinheiro público nas cidades onde os próprios insatisfeitos e indignados residem.
Filósofos, sociólogos, psicólogos, economistas e outros estudiosos do comportamento humano certamente tecerão seus argumentos para evidenciar as razões da renúncia por parte de parcela tão significativa do eleitorado. No entanto, dado o percentual elevado de cidadãos que renunciaram ao seu direito, evidencia-se que o maior desafio da democracia será sobreviver a si própria.
A quebra do pacto cívico entre representantes políticos e cidadãos, que vem sendo desnudada a cada manchete de jornal ao longo das últimas décadas e principalmente dos últimos anos, certamente está na raiz da fissura do sistema democrático. Sintoma dessa afirmação é que muitos aspirantes a cargos públicos foram eleitos, com expressiva votação, justamente por negar qualquer vínculo com a corrente forma de se fazer política.
Para que democracia brasileira seja um verdadeiro exercício cívico, necessário para a construção do diálogo plural em torno das necessidades comuns, e não uma obrigação eleitoral sazonal, irrelevante e decepcionante, urge que os atuais representantes aprovem as reformas necessárias para se restaurar a confiança do eleitor no sistema representativo. Uma reforma política, aproximando os eleitores de seus representantes, seguramente é um passo necessário. Mais que aproximar, em alguns casos, como nas pequenas e médias cidades, seja mais razoável facultar que as principais decisões sejam tomadas regularmente pelos próprios cidadãos, que poderiam exercer sua responsabilidade democrática por intermédio de deliberações virtuais. Todavia, uma reforma criminal, que permita afastar da política aqueles que viciam o processo democrático, é muito mais que um passo necessário: talvez seja a única forma de se garantir a higidez da democracia enquanto valor fundamental da sociedade brasileira.
*Anderson Furlan é juiz federal, e foi presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe) em duas gestões.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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