A imprensa mundial recentemente noticiou que o governo nepalês irá acabar com o sacrifício de animais durante o Festival de Gadhimai (“a deusa do poder”), que ocorre a cada cinco anos na região de Bariyarpur, perto da fronteira com a Índia. Segundo os organizadores do último festival, cerca de 500 mil animais (como bois, búfalos e cabras) foram sacrificados. Uma breve pesquisa pela internet pode fornecer imagens de como são realizados os sacrifícios, geralmente com homens degolando animais, pintados e marcados com as cores da deusa.
A história do sacrifício é tão antiga quanto a história da humanidade. Deuses que governaram no passado sempre exigiram sacrifícios para conceder benefícios, graças ou misericórdia, e alguns deuses, ainda reinando, persistem com a exigência. Por uma incrível coincidência, os deuses sempre pedem o sacrifício de outrem e nunca do próprio verdugo. Seria muito mais simples e aceitável socialmente se cada adepto, seja lá de qual culto, credo ou religião for, se auto sacrificasse para agradar seus deuses, como fazem algumas vertentes do islamismo ou catolicismo.
Sócrates, por exemplo, no leito de morte pediu para sacrificarem um galo ao deus Esculápio. Agammenon, durante a Guerra de Troia, determinou o sacrifício de sua filha Ifigênia para que a deusa Artemisa concedesse bons ventos a impulsionar sua frota de navios. Igualmente, no Velho Testamento, em livro comum ao judaísmo, cristianismo e islamismo, Abrão não titubeou ao sacrificar seu filho para agradar a Deus. Salomão, por outro lado, sacrificou milhares de bois e ovelhas para obter de Deus a graça da “sabedoria”. Em Roma, os animais eram sacrificados por vários motivos, para se ter sorte, saúde e até mesmo para que se lesse o futuro desde suas entranhas. Na China, Egito e terras nórdicas era comum sacrificar e enterrar animais, escravos e esposas com os guerreiros, para que estes pudessem acompanhá-los em outra vida. Os celtas queimavam pessoas dentro de estruturas de palha para que obtivessem a graça divina de um ano frutuoso. Entre os maias e astecas, o sacrifício humano servia para agradar os deuses, principalmente para que não apagasse o sol durante os eclipses. As divindades Quetzalcóatl e Tezcatlipoca exigiam sangue para conceder boas colheitas aos astecas e toltecas. E os incas tinham o costume de sacrificar crianças para amenizar a ira de seus deuses.
Na África, pessoas albinas são perseguidas e assassinadas para que partes de seus corpos sejam usadas em rituais religiosos
Felizmente, muitas religiões deixaram seus sacrifícios como registro histórico. Não obstante, ainda hoje alguns deuses continuam a exigir sacrifícios. A deusa Gadhimai, por exemplo, em honra da qual se sacrificaram 500 mil animais em 2014, não descarregará sua ira sobre o povo do Nepal, ao mesmo tempo em que concederá sorte e prosperidade. Na África, pessoas albinas são perseguidas e assassinadas para que partes de seus corpos sejam usadas em rituais religiosos. Há alguns anos, uma adolescente de 15 anos, chamada Manju Kumari, foi sacrificada por integrantes de uma família paquistanesa para que a deusa Kali concedesse-lhes fabulosos favores.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) está para decidir duas importantes questões envolvendo animais. A primeira, já tratada em outros escritos e que é objeto da ADI 4.983-CE, diz respeito à tensão existente entre as normas constitucionais que preveem a proteção de manifestações culturais (art. 215 e §§) e a vedação de se tratar animais com crueldade (art. 225, §1.º, VII). É a ação que vai determinar se a tortura é cultura, ou melhor, se a “vaquejada” é uma manifestação cultural digna de proteção. A outra, consubstanciada no RE 494.601/RS, envolve a tensão existente entre a mesma proibição de crueldade (art. 225, §1º, VII) e o direito à liberdade religiosa (art. 5, VI), especificamente no que tange ao sacrifício de animais em cultos religiosos.
Sobre esse caso, o estado do Rio Grande do Sul, por meio da Lei n.º 12.131/04, alterou o art. 2.º da Lei n.º 11.915/03, para permitir sacrifício de animais nas religiões de matriz africana. O Tribunal de Justiça daquele estado entendeu que a lei seria constitucional, na medida em que o sacrifício não implicasse crueldade, que poderia ser punida na forma do art. 29, da Lei n.º 9.605/98.
Como sempre tenho defendido, a interdição da crueldade é uma regra constitucional, e não um princípio, não admitindo, portanto, um juízo de ponderação. Como toda regra, ou vale ou não vale. Não existe um meio termo.
A crueldade contra animais foi vedada pela Constituição Federal, devendo o exercício dos direitos culturais e religiosos ser a ela condicionado, não sendo admitida ou tolerada qualquer prática, ainda que religiosa ou cultural, que submeta animais a crueldade. Aliás, além da regra proibitiva, impôs a Constituição o dever do poder público e sociedade proteger a fauna, qualquer que seja ela (art. 225, §1º, VII).
A história do sacrifício é tão antiga quanto a história da humanidade. Deuses que governaram no passado sempre exigiram sacrifícios para conceder benefícios, graças ou misericórdia, e alguns deuses, ainda reinando, persistem com a exigência
Muito embora haja uma dificuldade semântica em se definir crueldade, qualquer concepção que se adote a esse respeito necessariamente encontra um ponto de convergência na percepção que os seres humanos possuem de sofrimento. É possível se tirar a vida de seres humanos (eutanásia) e animais sem sofrimento, prática tolerada pela lei. A extinção da vida, com qualquer grau de sofrimento (físico e psicológico), no entanto, amolda-se a qualquer definição de crueldade que se possa estabelecer medianamente.
É exatamente o caso do sacrifício religioso de animais, inclusive e principalmente as inegáveis e horrivelmente cruéis formas de abate Kosher (judeus) e Halal (muçulmanos), assim como a morte de animais em cultos de matriz africana (candomblé e umbanda, entre outras).
Caberá ao Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 494.601/RS, definir, primeiro, se o sacrifício de animais, no seio da liberdade religiosa assegurada constitucionalmente, viola a proibição de crueldade ou, como decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a tipificação da crueldade deve ocorrer no caso a caso, nos termos do art. 29 da Lei n.º 9.605 – situação em que muito dificilmente restará configurado o dolo específico exigido pelo tipo. E, segundo, caso a Corte Maior entenda que o sacrifício de animais não viola a proibição, deverá decidir se a outorga desse “direito ao sacrifício” às religiões de matriz africana não viola o princípio da isonomia, hipótese em que esse direito seria extensível a todas as outras religiões.
Se por um lado afigura-se extremamente importante que a sociedade brasileira esteja discutindo práticas que submetam os animais à crueldade, denotando inegavelmente um avanço civilizatório, por outro lado preocupa na mesma medida o fato de que nas discussões institucionalizadas, perante os órgãos decisórios, não raras vezes os animais ainda continuam sendo entendidos como simples objetos.
Em um momento da História em que os avanços da Ciência (v.g. Declaração de Cambridge sobre a Consciência) reconhecem a similitude neuronal entre diversos seres vivos, em que outros ordenamentos jurídicos (v.g. França, Alemanha) reconhecem animais como seres sencientes e não mais como coisas, causa um certo desalento perceber quão devagar está sendo no Brasil a marcha pelo desenvolvimento de atos estatais moralmente mais responsáveis com os demais seres vivos. Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, como guarda da Constituição e órgão decisório máximo da nação, não sacrifique a norma constitucional do art. 225, §1.º, VII, transformando em letra morta a regra da vedação da crueldade contra animais.
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