Shakespeare, interpretação bíblica e crueldade
Escrita no final do século XVI, a peça “O Mercador de Veneza” é uma das mais conhecidas e polêmicas obras do dramaturgo inglês William Shakespeare. A trama trata de um empréstimo feito por Antônio, dono de uma frota de navios, junto ao judeu Shylock. Como garantia de que o valor seria devolvido, Antônio assinou contrato autorizando Shylock a extrair meio quilo de sua própria carne, especialmente tirada de perto do coração, caso não pagasse a dívida contraída.
Como Antônio não conseguiu honrar o pagamento, em razão do naufrágio de seus navios, a cobrança da garantia foi levada ao juiz veneziano. O juiz deu ganho de causa à Shylock, permitindo-o que extirpasse a carne de Antônio. No entanto, como o contrato era expresso ao mencionar carne, sem mencionar sangue, Shylock deveria retirar a carne sem derramar qualquer gota de sangue. Como se tratava de algo impossível, Shylock acabou perdendo não apenas a causa, mas todos os seus bens.
A história do Mercador de Veneza explica bem como a interpretação das palavras bíblicas pode ser usada para fraudar o próprio texto. Na peça de Shakespeare, o judeu fica impossibilitado de receber sua dívida porque o juiz considera impossível retirar a carne do ser humano sem o sangue. No mundo real, a Bíblia proíbe o consumo de carne com sangue, mas mesmo assim algumas religiões criaram interpretações que a permitem.
Na Bíblia (GN 9:2-4), Deus entrega aos homens tudo sobre a terra (“tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar, nas vossas mãos são entregues”). Esclarece sua ordem dizendo que tudo aquilo que se move é vivente e servirá para mantimento (“tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde)”. Deus, no entanto, faz uma ressalva importante: afirmando que o sangue é a vida da carne, proíbe que se coma carne com sangue (“a carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis”).
Várias interpretações são possíveis ao texto bíblico. Em passagens anteriores, Deus havia permitido apenas o consumo de plantas (GN 28-30), concedendo aos humanos o domínio, mas não a autorização para comer animais. Parece evidente, contudo, que, na passagem posterior, Deus permitiu que carne sem sangue fosse consumida como alimento, sendo proibido comer carne com sangue. Aliando-se essa passagem ao Novo Testamento, desde as atividades de Jesus como pescador até seus milagres (multiplicação de pão e peixes), é possível perceber a orientação bíblica para o consumo de peixes e outros animais que não tenham tamanha vascularização como os demais mamíferos.
Algumas religiões pautadas basicamente em textos do Velho Testamento, entretanto, utilizaram a hermenêutica para justificar o consumo da carne de outros animais de sangue quente e altamente vascularizados, como bovinos e ovinos.
É difícil para qualquer pessoa minimamente racional – e que tenha visto algum pedaço de carne – acreditar que a carne de bovinos e ovinos, por exemplo, não tenham sangue ou que toda gota de sangue, cada molécula, possa ser retirada. Shakespeare, ainda no século XVI, já havia chamado a atenção para esse fato.
Para contornar essa dificuldade, estas religiões, principalmente o judaísmo, trataram de encontrar uma solução que lhes permitissem continuar com a morte de animais de sangue quente e o consumo de carne. Essa solução é o chamado “corte Kosher” (e também o Halal), que vem a ser a degola de animais vivos para que o sangue jorre de suas artérias e deixe a “carne sem sangue”.
Uma carne Kosher é aquela obtida a partir do ritual religioso Schechita, o qual é supervisionado pelo Shochet – pessoa treinada segundo as leis judaicas - , que degola o animal com uma grande faca afiada chamada Chalaf, orando a Beracha (benção).
O corte Kosher, além de permitir que o sabor apreciado pelos homens triunfe sobre a vontade divina, abastece um comércio estimado em US$ 400 bilhões em todo o mundo, cerca de US$ 200 bilhões apenas nos Estados Unidos, sendo que o Brasil anualmente exporta quase US$ 2 bilhões em carnes decorrentes dessa forma de abate.
Apesar de que, sob certo ponto de vista religioso, uma facada na garganta possa ser uma benção, certamente não é uma benção ao animal, que, tomado pelo medo e pelo horror, sofre uma morte cruel, lenta e sanguinária (para quem tiver alguma dúvida, recomendo procurar vídeos na internet).
A Polônia, em 2013, esteve envolvida em uma polêmica envolvendo o corte Kosher e o Halal. Primeiramente, o Tribunal Constitucional, atendendo a um pedido dos ativistas pelos direitos dos animais, proibiu essa forma de abate por considerá-la cruel. O Poder Executivo levou a questão ao Parlamento, procurando legalizar o corte por degola. O Poder Legislativo, porém, referendou a posição do Tribunal Constitucional e baniu o corte Kosher e o Halal da Polônia.
Sendo o Brasil um estado laico, e, ademais, que proíbe constitucionalmente a crueldade (art. 225, §1º, VII) e tem previsão legislativa explícita acerca da proibição de abuso e maus tratos aos animais (art. 32 da Lei nº 9.605), o corte Kosher (e também o Halal) não pode ser admitido, consentido ou tolerado. Toda pessoa pode denunciar ao Ministério Público os estabelecimentos que o praticam, cabendo a essa instituição tomar as providências cabíveis para que estas atividades cruéis cessem.
Nenhuma religião, por mais importante que seja para seus adeptos e para a história da civilização, pode atropelar as leis de uma sociedade, principalmente suas decisões fundamentais radicadas no texto constitucional. A Constituição brasileira, ao tempo que permite toda manifestação religiosa, também proíbe atividades cruéis contra animais. Os adeptos das religiões que degolam animais para que sirvam de alimento podem até interpretar textos bíblicos para que chancelem e autorizem a crueldade. Não podem, entretanto, dobrar a Constituição brasileira para que sua interpretação da Bíblia prevaleça sobre a norma constitucional. Assim como o juiz veneziano proibiu o judeu Shylock de se derramar sangue do comerciante cristão, também a Constituição proíbe a todos que se pratique a crueldade contra animais.
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