1. Sócrates e a mulher de César
Uma grande revista de circulação nacional trouxe, em sua edição de domingo, uma matéria intitulada “Os Ecos de um Casamento” , na qual informava seus leitores da presença do Ministro Teori Albino Zavascki na festa do filho de um amigo seu, o advogado Eduardo Ferrão, que teria feito uma reunião em seu escritório, algum tempo antes, para tratar de reflexos da Operação Lava-Jato, relatada no Supremo Tribunal Federal pelo aludido Ministro.
A função judicial sempre foi e continua sendo objeto de preocupação por parte da sociedade, da academia e da imprensa.
Sócrates, por exemplo, aconselhava os juízes a ouvir cortesmente, responder sabiamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente. No âmbito da polis grega, entendia-se o juiz com integrante da sociedade. Pela sentença de Sócrates, percebe-se que não se exigia do juiz uma distância das pessoas, mas, ao contrário, depositava-se nele a capacidade de ouvir com cortesia, não se comprometer ao respoder, refletir de forma técnica e decidir imparcialmente.
Talvez por abusos que tenham sido cometidos ao longo dos tempos, passou a se exigir do juiz uma conduta um pouco mais distante sociedade. Como salienta o Prof. A. Wayne MacKay, em seu Judicial Ethics: Exploring Misconduct and Accountability for Judges [1], “um juiz, em nossa sociedade, mantém uma tênue posição: ele ou ela precisam ser como a mulher de César; ou se arrisca ao constrangimento e censura nas mãos da comunidade e da imprensa.[2]
A preocupação com a conduta do julgador, com a inferência de que ele deve se comportar como a mulher de César, sob risco de ser censurado pela sociedade e pela imprensa, encerra em si um comando não escrito que procura garantir que o juiz seja imparcial, independente e que não julgue casos em que possa haver conflito entre seus interesses e de alguma das partes.
Entretanto, entre Sócrates e a mulher de César existe uma zona cinzenta, exponencialmente aumentada pela complexidade das interações sociais da modernidade, na qual não se pode enumerar todas as possibilidades da atuação social do juiz.
Talvez por essa razão o Código Canadense expressamente anotou: “Enquanto o ideal de integridade é fácil de se afirmar em termos gerais, é muito mais difícil e talvez até mesmo imprudente ser mais específico. Pode haver poucos valores universais já que o efeito da conduta sobre sobre a percepção da comunidade depende de padrões da comunidade que podem variar de acordo com o tempo e lugar.[3]
2. Teste da Aparência
Não é tarefa fácil decidir quais as condutas sociais que são autorizadas e quais são vedadas aos juízes. Talvez por isso não existam muitos Códigos de Ética da Magistratura. E aqueles que existem, geralmente estabelecem algumas restrições explícitas (como a proibição de se exercer o comércio, de se dedicar à atividade partidária ou de julgar casos envolvendo seus familiares), deixando ao juiz um comando geral, como consta nos “Ethical Principles for Judges - Canadian Judicial Council” [4], no sentido de que “juízes devem fazer todos os esforços para garantir que o seu comportamento esteja acima de qualquer reprovação na opinião de pessoas que razoáveis, justas e bem informadas.”[5]
O “Code of Conduct for United States Judges” [6] registra, logo no início, em seu “Canon 2”, que um Juiz deve evitar a impropriedade e a aparência de impropriedade em todas as suas atividades.[7] E para que isso seja alcançado, o juiz deve seguir dois sub-princípios, quais sejam:
(A) “Respeito à Lei. Um juiz deve respeitar e cumprir a lei e deve agir em todos os momentos de uma maneira que promova a confiança do público na integridade e imparcialidade do poder judicial.”[8]
(B) “Influências externas. Um juiz não deve permitir que relacionamento familiar, social, político, financeiro ou outros relacionamentos possam influenciar a conduta judicial ou julgamento. Um juiz não deve emprestar o prestígio do cargo para promover os interesses privados do próprio juiz ou outros, nem transmitir ou permitir que outros o façam para transmitir a impressão de que eles estão em uma posição especial para influenciar o juiz. Um juiz não deve depor voluntariamente como testemunha.”[9]
É o que se pode chamar de Teste da Aparência, e, como foi decidido no caso Pepsico, Inc. vs. McMillan, mencionado pelo Prof. A. Wayne MacKay, “The test for an appearance of partiality is meant to be an objective one, whether an objective, disinterested observer fully informed of the relevant facts would entertain a significant doubt that the judge in question was impartial.” Em outras palavras, o teste de aparência de parcialidade é destinado a ser um critério objetivo, de modo que um um observador desinteressado e plenamente informado dos fatos teria uma dúvida significativa acerca da imparcialidade do juiz em questão.
O Código dos Juízes dos Estados Unidos esclarece acerca do teste de aparência, nos seguintes termos: “Uma aparência de impropriedade ocorre quando mentes razoáveis, com o conhecimento de todas as circunstâncias relevantes divulgadas por uma pergunta razoável, poderiam concluir que a honestidade, integridade, imparcialidade, temperamento, ou adequação para servir como um juiz está prejudicada. A confiança pública no Judiciário é erodida por condutas irresponsáveis ou impróprias dos juízes. Um juiz deve evitar toda impropriedade e aparência de impropriedade. Esta proibição aplica-se tanto a conduta profissional e pessoal. Um juiz deve esperar ser objeto de constante escrutínio público e aceitar de livre e espontânea vontade restrições que podem ser vistos como um fardo pelo cidadão comum. Porque não é possível listar todos os atos proibidos, a proibição é necessariamente expressa em termos gerais que ampliam o que é prejudicial na conduta de juízes, embora não especificamente mencionadas no Código.[10]
Exigir que os juízes façam todos os esforços para assegurar que suas condutas não sejam reprovadas na visão de pessoas razoáveis, justas e bem informadas, todavia não assegura um alto grau de concretude ao comando, pois, como bem observou o anteriormente citado Prof. A. Wayne MacKay, a visão do que seja uma conduta social reprovável pode variar de em cada país ou cultura.[11]
3. Código de Ética da Magistratura
O Brasil possui um Código de Ética da Magistratura, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (Publicado no DJ, páginas 1 e 2, do dia 18 de setembro de 2008), cujos principais artigos acerca da conduta social do juiz são:
ÞArt. 5º Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos.
ÞArt. 15. A integridade de conduta do magistrado fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura.
ÞArt. 16. O magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral.
ÞArt. 17.É dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprometer sua independência funcional.
ÞArt. 37. Ao magistrado é vedado procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções.
De uma maneira ou de outra, com poucas variações, estes mesmos comandos são encontrados nos Códigos de Ética dos Juízes do Canadá, Estados Unidos, Escócia e alguns outros mais.
Percebe-se, claramente, que os comandos em questão são termos gerais, vazados em palavras de conteúdo aberto, ou seja, que dependem de uma valoração em concreto da conduta do juiz para que se possa, mediante uma intelecção justa e razoável, definir acerca de uma conduta que não tenha recebido “indevidas influências”, seja “íntegra”, “dignificando a função” jurisdicional e que seja compatível com “a dignidade, a honra e o decoro de suas funções”.
4. Fora da Torre de Marfim e Dentro da Zona Cinzenta
Analisando-se as todas as injunções dirigidas ao juiz até aqui expostas, percebe-se, nas entrelinhas, que o juiz faz parte da sociedade e de seu tempo, mas que deve tomar cuidados extras no tráfico social, não exigíveis do cidadão comum, para que sua imparcialidade e integridade não sejam colocadas à prova, sob pena de se prejudicar todo o sistema judiciário, a partir da erosão da confiança da população no trabalho dos juízes. Resta evidente que o juiz não é um ser isolado, anti-social, que deva se esconder de tudo e de todos para que o julgamento da comunidade não lhe seja prejudicial. Muito pelo contrário. O juiz faz parte da comunidade e interage com ela, como um cidadão comum.
O Código Canadense trata dessa questão nos seguintes termos: “Juízes, é claro, têm vidas privadas e devem aproveitar, tanto quanto possível, os direitos e liberdades dos cidadãos em geral. Além disso, um juiz intocável é menos provável que seja efetivo. Nem o desenvolvimento pessoal do juiz nem o interesse público está bem servido se os juízes sejam indevidamente isolados das comunidades que servem. Normas legais freqüentemente exigem a aplicação do teste da pessoa razoável. A instrução de um processo, uma parte importante do trabalho de um juiz, demanda a avaliação das evidências à luz de bom senso e experiência. Portanto, os juízes devem, na medida consistente com o seu papel especial, permanecem intimamente em contato com o público.”[12]
De uma forma ainda mais enfática, lastreada em doutrinador francês, prescreve: “O juiz administra a lei em nome da comunidade e, portanto, o desnecessário isolamento da comunidade não promove sabedoria ou julgamentos justos. O Honorável Gerald Fauteux coloca a questão de forma sucinta e eloquente em seu Le Livre du Magistrat: “[não há intenção] de colocar o judiciário em uma torre de marfim e obrigá-lo a cortar todas as relações com as organizações que servem a sociedade. Não se espera que os juízes vivam à margem da sociedade da qual são uma parte importante. Fazer isso seria contrário à efetividade do exercício do poder judicial, que exige exatamente a abordagem oposta. “[13]
Se por um lado é certo que existem condutas que, a todas as luzes, não são compatíveis com a função jurisdicional (como, por exemplo, participar de grupos ou seitas com viés segregacionista, emitir opiniões políticas ou depreciativas para um determinado número de pessoas, servir habitualmente como conselheiro jurídico ou de investimentos), por outro lado, uma infinidade de condutas que podem ocorrer no dia-a-dia do juiz situam-se em uma zona cinzenta, não se podendo dizer, a priori, se são capazes de serem vistas negativamente por uma pessoa razoável, justa e bem informada.
Um exemplo são as interações sociais travadas no mundo virtual. E um mundo cada vez menor, onde cada palavra e pensamento pode trafegar em escala universal, lançando suspeições, destruindo reputações, criando heróis e causando pânico, as manifestações de um juiz também serão objeto de escrutínio público.
O Código Escocês[14], por exemplo, possui uma advertência para a atuação dos juízes em redes sociais. Na Escócia, “um juiz deve estar ciente de que as atividades extra-judiciais acima referidas se estendem para sua presença online. Um juiz deve ser cuidadoso na publicação online de mais informações pessoais do que é necessário. Os juízes são aconselhados a não se inscreverem em sites de mídia social como o Facebook ou o Twitter e deve agir com extrema cautela ao discutir ambas as questões judiciais e pessoais. Se um juiz envolver-se em uma comunicação on-line, o juiz deve estar ciente de que as discussões on-line não são privadas, os comentários podem ser copiados e têm uma longevidade não intencional. A disseminação da informação e da tecnologia significa que é cada vez mais fácil para realizar pesquisas “quebra-cabeças”, que permite que os indivíduos possam reunir informações sobre um juiz de várias fontes independentes.”[15]
Seja de forma on line ou presencial, a vida em sociedade, com interações de ordens variadas, envolve o juiz em múltiplas relações, como as relações sociais, familiares, acadêmicas, religiosas, etc. O juiz participa da vida da comunidade de diferentes formas, muito embora caiba a ele, no exercício de seu ofício, a julgar a vida das pessoas, muitas das quais possa ter tido um contato na multiplicidade das relações que desenvolve na sociedade.
A experiência demonstra que os operadores jurídicos, por terem frequentado as mesmas faculdades, lerem os mesmos livros, participarem dos mesmos seminários, acabam por desenvolverem relações de amizade. É natural e perfeitamente aceitável aos olhos de um observador razoável que os juízes tenham relacionamento de amizade – e mesmo contraiam laços conjugais – com advogados, juízes (inclusive aposentados), promotores, procuradores e professores de Direito.
Não parece despropositado afirmar que muitos laços de amizade surjam dentro da mesma área de atuação profissional. E todo laço de amizade acarreta convivência, social e até mesmo privada, sem que isso possa macular a conduta profissional do juiz. A questão que se coloca é se o juiz, em decorrência dessa amizade, passará a percepção de que poderá favorecer o profissional com quem tenha amizade.
O Código Escocês responde a essa pergunta da seguinte maneira: “No interesse da imparcialidade judicial, um juiz deve ser circunspecto no que respeita ao contato com esses profissionais do direito que estão atualmente aparecem, ou que podem aparecer regularmente, em seu tribunal. Em particular, o juiz não deve agir de tal forma que dêem origem a uma percepção a justificar que ele ou ela pode estar inclinado a favorecer as conclusões de um operador jurídico particular. No entanto, normalmente não haverá nenhuma razão para evitar relações sociais normais com os profissionais da justiça. Na verdade, a manutenção das relações sociais entre juízes e advogados pode ser útil para o desenvolvimento de uma benéfica compreensão mútua.”[16]
No caso do Ministro Teori, a crítica velada constante na revista era de que não pareceria apropriado um juiz ir a uma festa de casamento (evento com grande público) onde estivessem presentes advogados com interesses em processos da corte onde atua. A exigência desborda do razoável.
Como ficou esclarecido na reportagem, o Ministro e o advogado, pai do noivo, possuem relações de amizade muito anteriores à chegada do Ministro ao Supremo Tribunal Federal. É natural e recomenda a boa educação que o juiz vá à celebração, um momento importante na vida do amigo. Não se espera, ademais, que o juiz peça ao anfitrião, antecipadamente, a lista de convidados do evento, para decidir se poderá ir ou não ou, pior, peça ao amigo para desconvidar alguém. A seguir nessa toada, o juiz apenas poderá ir a algum lugar se souber, previamente, quais são os antecedentes criminais dos convidados ou se algum deles são autores, réus ou patrocinam ações em sua jurisdição.
A questão, como se vê, é de outra natureza. E o pano de fundo é o embate ideológico entre o juiz socrático e a mulher de César. O embate entre o propósito de confiança no julgador, com capacidade de ouvir sem se comprometer e julgar com imparcialidade, e o perigo da contaminação moral, a qual gera uma pretensa necessidade do isolamento social do juiz para se proteger a credibilidade de todo o Judiciário.
Não se pode supor que todas as pessoas se aproveitarão da presença de um juiz para fazer pedidos impróprios, assim como não é razoável supor que todas as pessoas farão uma consulta particular ao encontrar um médico ou pedir um espaço no jornal ao encontrar um jornalista. Mas mesmo que isso ocorra, ainda mais irrazoável é supor que um juiz será influenciado por um comentário ou pedido realizado durante um evento social. Assim como nenhum juiz se sentirá mais convencido a condenar alguém porque se encontrou com um membro do Ministério Público em um evento social, igualmente nenhum juiz se sentirá compelido a absolver o mesmo réu se se encontrar com o advogado de defesa logo em seguida. A estupidez, ao que parece, está em supor que o juiz é um ser estúpido e manipulável.
O Código Canadense anota com propriedade que “os juízes devem, é claro, rejeitar as tentativas impróprias feitas pelos litigantes, políticos, funcionários ou outras pessoas para influenciar suas decisões. Eles também devem tomar cuidado para que a comunicação que o juiz possa iniciar com essas pessoas não possam levantar preocupações razoáveis sobre a sua independência. (…) Como o Honorável J. O. Wilson pôs em um Livro para Juízes: Pode-se supor com segurança que cada juiz saberá que [a tentativa de influenciar um tribunal] apenas deve ser feita publicamente em uma sala do tribunal por advogados ou litigantes. Mas a experiência tem mostrado que outras pessoas desconhecem ou deliberadamente ignoram essa regra elementar, e é provável que qualquer juiz, no curso do tempo, seja submetido a esforços ex parte por litigantes ou outras pessoas para influenciar as suas decisões em questões litigiosas antes dele. (...) Independentemente da fonte, ministerial, jornalística ou outra, todos esses esforços devem, é claro, ser firmemente rejeitados. Esta regra é tão elementar que não requer maiores explicações.”[17]
O juiz, como Sócrates aconselhou, deve ser capaz de rejeitar eventuais atitudes impróprias (ouvindo cortesmente e respondendo sabiamente) onde quer que elas ocorram, seja em uma festa de casamento, em um restaurante, na reunião de pais de alunos, nos corredores da faculdade, etc. Exigir que o juiz não pratique atos que possam colocar em dúvida sua imparcialidade não significa exigir que sacrifique sua vida familiar e social em prol de um isolamento que prejudica o próprio juiz, enquanto ser humano gregário, sua família e sua própria apreensão de experiências sociais necessárias para formação de sua capacidade de julgamento.
5. Papéis do Juiz na Sociedade
O juiz, enquanto juiz, pode assumir diferentes papéis na sociedade. Ele pode ser apenas magistrado responsável pelo julgamento das ações de sua competência, pode ser o chefe do Poder Judiciário na comunidade e, ainda, pode ser o representante de sua classe, eleito pelos seus pares para agir e falar em nome deles. Esses três papéis permitem uma diferenciação no agir do juiz.
Enquanto apenas magistrado, sua atuação social se torna mais limitada. Não lhe é exigível, por exemplo, que represente o Judiciário ou os demais juízes em eventos públicos ou com grande público, tampouco que se relacione institucionalmente com pessoas e autoridades que não sejam do seu círculo social ou de amizade.
Mesmo sem funções de representação, o juiz possui família (natural e por afinidade), frequenta festas, restaurantes, clubes, igreja, templos, pratica esportes, enfim, exerce sua liberdade como qualquer cidadão. E no exercício de suas liberdades, pode e deve o juiz se relacionar no âmbito da sociedade da qual faz parte.
Não existe, em princípio, nenhum problema no fato de o juiz se relacionar com advogados, promotores, procuradores e outros profissionais da área jurídica. Pondera-se, de todo modo, acerca da específica particularidade de o juiz ser ou não responsável por processos envolvendo pessoas de seu círculo de relacionamento. Sendo juiz de uma Vara de Precatórias (que apenas fiscaliza o cumprimento de atos solicitados por outros juízes), por exemplo, nada obsta que no círculo de relacionamentos do juiz exista autor ou réu em uma ação de separação e divórcio, um crime de trânsito ou uma execução fiscal, vez que o juiz não será responsável pelo julgamento desses casos. Por outro lado, a proximidade demasiada com autor ou réu revela-se impeditiva, ainda que não se trate da amizade íntima referida pelo Código de Processo Civil, da mesma forma que um juiz deve se abster de julgar casos em que seus familiares sejam diretamente interessados.
O Código Escocês evidencia situações em que não se deve considerar o juiz como desqualificado para julgar determinada causa, seja por ter tido convivência eventual (como em uma festa) ou mesmo por ter um membro da família no escritório que a patrocina. Em seus termos: “Amizade pode ser distinguida da mera convivência, a qual pode ou não ser uma razão suficiente para a desqualificação, dependendo da natureza e extensão de tal convivência. (...) Amizade ou relacionamento profissional com o advogado, ou um advogado ou representar uma parte, não é geralmente considerado como um motivo suficiente para a desqualificação. O fato de que um membro da família do juiz é um parceiro ou empregado de uma firma de advogados envolvidos em um caso perante o juiz não exige necessariamente desqualificação. Em tal situação, é uma questão de se considerar todas as circunstâncias, incluindo a extensão do envolvimento no caso da pessoa em questão.”[18]
Também não existe - e nem poderia existir - qualquer impedimento para que o juiz mantenha qualquer forma de relacionamento com autoridades de outros poderes, servidores públicos em geral ou mesmo empresários. A não ser que estas pessoas sejam autores ou rés em ações sob a responsabilidade do juiz, ou pessoas de má-reputação social (pela prática reiterada de crimes, por exemplo), nenhuma pressuposição justifica essa vedação. O juiz não se encontra impedido de participar do aniversário de um político, simplesmente porque o aniversariante é um político, assim como não poderia ser impedido de participar se fosse médico, policial ou jornalista. A crítica generalizada que se faz a determinadas classes profissionais, como os políticos, não significa que a generalização seja verdadeira - muito pelo contrário. Impedimento moral, certamente haveria, se o político em questão estivesse denunciado por desvios de verbas públicas em ações sob responsabilidade do juiz convidado ao aniversário, ou se o médico estivese sendo processado por erro em demanda sujeita ao julgamento do juiz.
Ao contrário dos juízes que são apenas magistrados, os juízes que detenham função de representação, como chefe do Judiciário local ou representante de classe, muitas vezes, pela exigência do cargo, deverão participar de eventos públicos (ou com grande público) no qual se sujeitarão à convivência eventual de pessoas com problemas com a Justiça.
Como representante do Poder Judiciário ou dos demais juízes, exige-se que o juiz, investido desse papel temporário, tome a iniciativa de participar de eventos ou interagir com outras autoridades ou personalidades que não necessariamente sejam do seu círculo de amizades ou mesmo sejam praticamente desconhecidas.
Embora no mais das vezes essas pessoas não estejam sujeitas à jurisdição do juiz-representante, ocasionalmente podem estar - sem que isso signifique qualquer conduta reprovável por parte do juiz. A reprovação apenas existiria se essa convivência eventual transbordasse para uma forma de relacionamento, ainda que no próprio evento, apta a gerar a percepção de falta de parcialidade do juiz. Mantendo a postura protocolar, no âmbito da representação, imaculada restará a imagem do juiz perante um público razoável e bem informado.
6. Em jeito de conclusão
Um juiz é um cidadão, no gozo de suas liberdades, sendo parte integrante da sociedade de seu tempo. Não é razoável exigir dele que viva enclausurado em uma torre de marfim, pois esse isolamento é prejudicial para a apreensão de experiências que podem ser úteis ao seu exercício profissional. Também não se afigura razoável exigir que o juiz não tenha laços de amizade e convivência com outros profissionais da área jurídica, inclusive atuantes em processos sob sua jurisdição. Mas se pode exigir dele que impeça que os laços de amizade influenciem suas decisões, assim como se abstenha de manter relacionamento próximo com pessoas que estejam sujeitas ao seu julgamento. Seja em uma festa, evento público ou na vida privada, um juiz pode acabar se sujeitando a ouvir pedidos impróprios, mas pode ouvir e simplesmente ignorar ou, se for o caso, declinar de julgar o processo de quem lhe fez o pedido. O equilíbrio entre a função pública e a vida privada, na profissão de juiz, deve ser encontrado no meio termo entre os conselhos de Sócrates e a advertência de César a sua mulher. Não é a mera presença na festa de um amigo, em eventos sociais ou públicos que a honra e a moral de um juiz restarão prejudicadas. Um juiz tem a capacidade de discernir entre o certo e o errado, o conveniente do inconveniente, senão não seria responsável por julgar a vida das pessoas. E é no julgamento de questões importantes para a vida das pessoas, no exercício diário de suas atividades, que o juiz se legitima aos olhos da sociedade.
*Anderson Furlan, juiz federal, presidente da APAJUFE - Associação Paranaense dos Juízes Federais.
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[1] http://cjei.org/publications/mackay.html
[2] “A judge in our society holds a tenuous position: he or she must be like Caesar’s wife; or risk embarrassment and censure at the hands of the community and the media.”
[3] “While the ideal of integrity is easy to state in general terms, it is much more difficult and perhaps even unwise to be more specific. There can be few absolutes since the effect of conduct on the perception of the community depends on community standards that may vary according to place and time.”
[4] https://www.cjc-ccm.gc.ca/cmslib/general/news_pub_judicialconduct_Principles_en.pdf
[5] “Judges should make every effort to ensure that their conduct is above reproach in the view of reasonable, fair minded and informed persons.”
[6] http://www.uscourts.gov/judges-judgeships/code-conduct-united-states-judges#c
[7] “A Judge Should Avoid Impropriety and the Appearance of Impropriety in all Activities.”
[8] “Respect for Law. A judge should respect and comply with the law and should act at all times in a manner that promotes public confidence in the integrity and impartiality of the judiciary.”
[9] “Outside Influence. A judge should not allow family, social, political, financial, or other relationships to influence judicial conduct or judgment. A judge should neither lend the prestige of the judicial office to advance the private interests of the judge or others nor convey or permit others to convey the impression that they are in a special position to influence the judge. A judge should not testify voluntarily as a character witness.”
[10] “An appearance of impropriety occurs when reasonable minds, with knowledge of all the relevant circumstances disclosed by a reasonable inquiry, would conclude that the judge’s honesty, integrity, impartiality, temperament, or fitness to serve as a judge is impaired. Public confidence in the judiciary is eroded by irresponsible or improper conduct by judges. A judge must avoid all impropriety and appearance of impropriety. This prohibition applies to both professional and personal conduct. A judge must expect to be the subject of constant public scrutiny and accept freely and willingly restrictions that might be viewed as burdensome by the ordinary citizen. Because it is not practicable to list all prohibited acts, the prohibition is necessarily cast in general terms that extend to conduct by judges that is harmful although not specifically mentioned in the Code.”
[11] “In that respect North American views about what constitutes judicial misconduct may vary from those in Africa. Indeed, there may be substantial differences between various countries within the vast continent of Africa.”
[12] “Judges, of course, have private lives and should enjoy, as much as possible, the rights and freedoms of citizens generally. Moreover, an out of touch judge is less likely to be effective. Neither the judge’s personal development nor the public interest is well served if judges are unduly isolated from the communities they serve. Legal standards frequently call for the application of the reasonable person test. Judicial fact-finding, an important part of a judge’s work, calls for the evaluation of evidence in light of common sense and experience. Therefore, judges should, to the extent consistent with their special role, remain closely in touch with the public.”
[13] “The judge administers the law on behalf of the community and therefore unnecessary isolation from the community does not promote wise or just judgments. The Right Honourable Gerald Fauteux put the matter succinctly and eloquently in Le livre du magistrat: “[there is no intention] to place the judiciary in an ivory tower and to require it to cut off all relationship with organizations which serve society. Judges are not expected to live on the fringe of society of which they are an important part. To do so would be contrary to the effective exercise of judicial power which requires exactly the opposite approach.””
[14] Statement of Principles of Judicial Ethics for the Scottish Judiciary - http://www.scotland-judiciary.org.uk/Upload/Documents/StatementofPriciplesofJudicialEthicsrevisedMay2015.pdf
[15] “A judge should be aware that extra-judicial activities referred to above extend to their online presence. A judge should be wary of publishing online more personal information than is necessary. Judges are advised not to sign up to social media sites such as Facebook or twitter and should exercise extreme caution in discussing both judicial and personal matters. Should a judge engage in online communication the judge should be aware that online discussions are not private, comments can be copied and have an unintended longevity. The spread of information and technology means that it is increasingly easy to undertake ‘jigsaw’ research which allows individuals to piece together information on a judge from various independent sources.”
[16] “In the interests of judicial impartiality, a judge should be circumspect as regards contact with those legal practitioners who are currently appearing, or who may appear regularly, in his or her court. In particular, the judge should not act in such a way as to give rise to a justified perception that he or she might be inclined to favour the submissions of a particular practitioner. However, there will usually be no reason to avoid ordinary social relationships with legal practitioners. Indeed, the maintenance of social relationships between judges, the bar and the solicitors’ profession may be conducive to the development of beneficial mutual understanding.”
[17] “Judges must, of course, reject improper attempts by litigants, politicians, officials or others to influence their decisions. They must also take care that communications with such persons that judges may initiate could not raise reasonable concerns about their independence. As the Honourable J.O.Wilson put it in A Book for Judges: It may be safely assumed that every judge will know that [attempts to influence a court] must only be made publicly in a court room by advocates or litigants. But experience has shown that other persons are unaware of or deliberately disregard this elementary rule, and it is likely that any judge will, in the course of time, be subjected to ex parte efforts by litigants or others to influence his decisions in matters under litigation before him. (...) Regardless of the source, ministerial, journalistic or other, all such efforts must, of course, be firmly rejected. This rule is so elementary that it requires no further exposition.”
[18] “Friendship may be distinguished from mere acquaintanceship, which may or may not be a sufficient reason for disqualification, depending on the nature and extent of such acquaintanceship. (...) Friendship or professional association with counsel, or a solicitor acting for a party, is not generally to be regarded as a sufficient reason for disqualification. The fact that a family member of the judge is a partner in, or employee of, a firm of solicitors engaged in a case before the judge does not necessarily require disqualification. In such a situation, it is a matter of considering all the circumstances, including the extent of the involvement in the case of the person in question. Past professional association with a party as a client need not of itself be a reason for disqualification, but the judge must assess whether the particular circumstances could create an appearance of bias.”
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